Joana no julgamento

 

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JOANA, A VIRGEM DA LORENA

(L. Denis - Obra: Joana D’Arc, Médium).

     Como explicaremos os contrastes que dão à pulcra figura de Joana d’Arc tão forte brilho: a pureza de uma virgem e a intrepidez de um capitão; o recolhimento com que ora no templo e a viveza jovial nos acampamentos; a simplicidade de uma campônia e os gostos delicados de uma dama de alta estirpe; a graça, a bondade, de par com a audácia, a força, o gênio? Que pensar da complexidade de traços que lhe compõem uma fisionomia sem precedente na História?

     Explicá-lo-emos de três maneiras: primeiro, pela sua natureza e sua origem. Sua alma, temo-lo dito, vinha de muito alto. Demonstra-o a circunstância de que, desprovida de toda e qualquer cultura terrestre, sua inteligência se elevava às mais sublimes concepções. Em seguida, pelas inspirações de seus guias. Em terceiro lugar, pelas riquezas que acumulara no decurso de suas vidas anteriores, vidas que ela própria nos fez conhecer.

     Joana era uma missionária, uma enviada, um médium de Deus e, como em todos os missionários do Céu, para salvação dos povos, três grandes coisas nela preponderam: a inspiração, a ação e, por fim, a paixão, o sofrimento que é o fecho, a apoteose de toda existência digna.

     Domremy, Orleães e Ruão foram os campos escolhidos para desabrolhar, expandir-se e consumar-se tão maravilhoso destino.

     A vida de Joana d’Arc tem flagrantes analogias com a do Cristo. Como este, ela nasceu entre os pequeninos da Terra. O adolescente de Nazaré discutia com os doutores da lei no sinédrio; do mesmo modo, a virgem da Lorena confunde os de Poitiers, respondendo-lhes às insidiosas perguntas. Ao vê-la expulsar do acampamento as ribaldas, reconhecemos o gesto de Jesus expulsando do templo os mercadores. A paixão de Ruão não emparelha com a do Gólgota e a morte da Pucela não pode ser comparada ao fim trágico do filho de Maria? Como Jesus, Joana foi renegada e vendida. O preço da vítima retinirá nas mãos de João de Luxemburgo, como na de Judas. A exemplo de Pedro no pretório, o rei Carlos e seus conselheiros voltarão costas e fingirão não mais a conhecer, quando lhes noticiam que Joana se acha em poder dos ingleses, ameaçada de cruel morte. Até a cena de Sant-ouen muitas semelhanças apresenta com a do Jardim das Oliveiras.

     Temos tratado longamente das missões de Joana d’Arc. Não haja equívoco sobre o sentido deste termo. Julgamos oportuno dizer aqui que, na realidade, cada alma tem a sua neste mundo. À maioria tocam em partilha as missões humildes, obscuras, apagadas; outras recebem encargos mais importantes, de acordo com as suas aptidões, com as qualidades que apuraram, evolvendo no perpassar das idades. Só às almas ilustres estão reservadas as grandiosas missões, que o martírio remata.

     Cada vida terrena, sabemo-lo, é a resultante de uma imenso passado de trabalho e de provações. Do conhecimento da lei de ascensão no tempo e no espaço, que já expusemos, não havia mister Joana, no décimo quinto século, por isso que as condições intelectuais de sua época não o comportavam. A concepção do destino era muito limitada: as vastas perspectivas da evolução teriam perturbado, sem proveito, o pensamento dos homens, ainda muito atrasados para apreciarem e entenderem os magníficos desígnios de Deus a respeito das criaturas humanas. Entretanto, no espírito superior de Joana, sujeito, como todos, à lei do esquecimento durante a encarnação na Terra, um passado maravilhoso esplende; virtudes, faculdades, intuições, tudo demonstra que aquela alma percorrera dilatado ciclo e amadurecera para  as missões providenciais. Pode-se mesmo, já o vimos, reconhecer nela, mais particularmente, um espírito céltico impregnado das qualidades daquela raça entusiástica e generosa, apaixonada pela justiça, sempre pronta a se consagrar às causas nobres. Familiarizada, desde os primeiros albores da História, com os mais transcendentes problemas, essa raça possuiu constantemente numerosos médiuns. Joana aparece-nos, por entre a caligem da Idade Média, como a reencarnação de alguma antiga vidente, ao mesmo tempo guerreira e profetisa.

     O que na sua personalidade, porém, predomina, em todas as eras e meios em que viveu, é o espírito de sacrifício, é a bondade, o perdão, a caridade. No desempenho das tarefas que lhe foram confiadas, mostrou-se invariavelmente o que Henri Martin soube definir numa palavra: “a mulher de grande coração”. Essas tarefas, Joana não as tem por findas. Continua a considerar-se em obrigação para com aqueles que Deus colocou sob seu patrocínio. Conserva ardente, como no século XV, o amor que vota à França, e os que então lhe foram objeto de solicitude ainda são presentemente seus protegidos. Entre os que tiveram parte em sua vida heroica, quer benéfica, quer maleficamente, muitos revivem hoje na Terra em condições bem diversas.

     Carlos VII, reencarnado num desconhecido burguês, acabrunhado de enfermidades, foi muitas vezes distinguido com a visita da “filha de Deus”. Iniciado nas doutrinas espiritualistas, pôde comunicar-se com ela, receber seus conselhos, seus incitamentos. Uma única palavra de censura lhe ouviu: “A nenhum, disse-lhe um dia Joana, me custou tanto perdoar como a ti.” Por meios e com o auxílio de influências que seria supérfluo indicar aqui, a virgem conseguira reunir em um só ponto do globo, há alguns anos, seus inimigos de outrora, até mesmo seus algozes, e, usando do ascendente que sobre eles exercia, procurava levá-los à luz, fazê-los defensores e propagandistas da nova fé. Era um espetáculo comovente para que, conhecedor daquelas personagens de uma outra época, podia perceber a maneira sublime por que ela se vingava, esforçando-se pelos transformar em agentes de renovação.

     Porque me há de a verdade obrigar a dizer que os resultados foram medíocres? Todos, sem dúvida, a ouviam com uma deferência cheia de admiração, sentindo bem ser um Espírito de alto valor, quem os aconselhava. Mas, logo o peso dos cuidados mundanos, dos interesses egoístas, das preocupações de amor-próprio, oprimia aquelas almas. O sopro do Além que, por instantes, as sacudira, cessou. Joana jamais se revelou senão a poucos. Os outros não souberam adivinhá-la. Raros puderam compreendê-la. Sua linguagem era muito perfeita; vertiginosas as alturas a que tentava atraí-los. Esses estigmatizados da história, que se ignoram a si mesmos, ainda não estavam amadurecidos para semelhante papel. Todavia, o que não foi possível obter no correr de uma existência, ela o alcançará nas que se hão de suceder, porquanto nada conseguirá esgotar-lhe a paciência e a bondade. E as almas sempre se encontram, ao longo do caminho do destino.              PRÓXIMO                                                                                                                                                      INÍCIO