Igreja ao lado do rio Mosel - Alemanha - Foto iap                                             Joaquim Pedro de Oliveira Martins - 1845/1894 - Foto www.wikipedia.org/

 

 

O PENSAMENTO É LIVRE

 

 

     De há muito que tenho em sentido vir falar-te e trazer o meu quinhão para a obra singular em que andas empenhado. Circunstâncias várias, porém, têm impedido que o tenha podido fazer.

 

     Chegou a oportunidade; e, visto que chegou, vou aproveitá-la.

 

     Não há grande mérito em afirmarmos daqui a existência da vida, que aí nos comprazemos negar. Nem mérito nem necessidade.

 

     É um fato natural. Seria contrassenso esperar o contrário. Está afirmada pela nossa própria existência. Ou ela não existiria e nós não viríamos, ou se nós viemos é porque ela existe.

 

     Não perco, pois, tempo a querer provar o que a minha presença demonstra. Seria cometer um pleonasmo, e os pleonasmos estão fora dos meus hábitos.

 

     Sendo assim, como é, resta-nos só uma coisa a apreciar. É esta: - Porque será que o homem põe tanta fereza em sustentar a sua não existência além da morte?

 

     Por mim julgarei.

 

     Não deixa de ser incontroversa verdade que a religião constitui um freio.

 

     Ora, como todas as religiões, mais ou menos alumiadas pela luz das civilizações, de que são produto e reflexo, se baseiam, também mais ou menos, na existência de Deus e da alma, seja qual for a forma por que pretendam justificar estas duas existências, segue-se que não há religião que não constitua um poderoso elemento para conduzir o animal humano a certo e determinado fim.

 

     Para o conduzir ou pretender conduzi-lo, o que não é bem o mesmo.

 

     Se é certo que, de fato, as religiões são um modo seguro de arrebanhar e domesticar homens, num propósito salutar de os corrigir e de os amoldar a princípios de filosofia transcendental, especulativamente perfeita ou tendente à perfeição, não é menos certo que não há animal mais indomesticável que o homem, mormente quando se lhe mete na cabeça que é alguma coisa de superior.

 

     Apoiado nesta falaz superioridade, se sente o freio moral a pretender guiá-lo, para o fazer entrar na uniformidade passiva de um grande rebanho, sujeito, no redil da obediência, a um princípio único e a determinações restritivas, reage contra esse freio. E como ele é peia de que pelo seu próprio esforço pode libertar-se, conclui-se pelo ato, excessivamente cômodo, de o suprimir.

 

     Como é mais fácil e mais tranquilo viver sem pressões, de que ceder e amoldar-se a elas, ainda que no fundo da sua consciência as reconheça úteis e profícuas, tem o homem procurado, desde sempre, destruir tudo quanto sirva de obstáculos ao livre exercício da sua vontade.

 

     Convenho em que de muito lhe tem valido, para o seu aperfeiçoamento moral, espiritual e até mesmo material, esse eterno gérmen de revolta, ingênito em todo cérebro humano; essa eterna aspiração de liberdade, que acalenta os sonhos do homem e lhe move e rege o pensamento; mas também não é menos certo que muitas vezes, precipitado no caminho das reivindicações, quer materiais, quer intelectuais, corre doido, cego, como cavalo fogoso sem rédea nem governo.

 

     Passa a meta, ultrapassa o limite razoável onde era justo que parasse, e arremessa-se por despenhadeiros, indo encontrar o estropiamento ou a morte, onde imaginaria achar a liberdade e a vida.

 

     As religiões, como coisas incompreensíveis e maravilhosas ao vulgo, feitas de princípios eternos e assentes em bases inamovíveis, constituem um estorvo ao libérrimo exercício do pensamento humano. Limitam-lhe a zona onde ele pode desenvolver-se, e os assuntos que podem ser submetidos ao seu justo exame.

 

     Deixam entrever horizontes infinitos, que constituem o desespero do homem por não os poder alcançar e explicar.

 

     O revoltado, como os não pode atingir, relega-os, suprime-os da sua vida.

 

     Suprime-os por efeito da sua vontade, como por efeito da sua vontade cerra os olhos para poder negar a luz. Mas no fim de todo o seu esforço, nem a luz deixou de existir, nem os princípios que tentou suprimir desapareceram.

 

     E, na maioria, se não na generalidade dos casos, nem mesmo da sua própria consciência conseguiu a supressão.

 

     Felizes os modestos e os conformados, que norteiam o seu viver dentro do âmbito que aquele limite lhes proporciona!

 

     Se dentro dele guiam a sua vida pelo farol da justiça e pela bússola da bondade, serão aí iluminados pelo sol radiante da esperança, acariciados pelo brando calor da tranquilidade de espírito, e ao aportarem, no fim da viagem, ao porto desconhecido da morte, encontrarão a felicidade.

 

     Os outros, os ambiciosos da liberdade plena, os insubmissos ao respeito, os que farão vogar o seu batel ao sabor desconcertado do seu pensamento sem governo, não raro darão com ele sobre os recifes do desespero, e em vez do apetecível descanso final, virão ao encontro de mágoas e dores, que, pela sua intensidade e pelo pavor do inesperado, lhes darão a sensação tétrica de uma eternidade de horror.

 

     Não venho fazer confissões do que se passou comigo. Basta que enuncie o fato para cada um tirar dele as ilações que lhe aprouver.

 

     Já não é pequeno favor falarmos-lhes daqui, prevenindo-os dos perigos, se são incautos; aconselhando-os se são contumazes ou inexperientes; alumiando-os, se lhes falta luz; ou guiando-os se forem cegos de entendimento.

 

     Isso faço também.

 

     Para que alguém tire proveito do que lhe digo, não reconheço vantagem em confidenciar a toda a gente o que comigo se passou.

 

     Nunca tive o hábito de aliviar-me, para carregar os outros. Tirarmos de nós segredos e entregá-los àqueles que nada têm com eles, é alijarmos responsabilidades e deveres para quem dessas responsabilidades e desses deveres não têm que fazer-se depositários.

 

     Se nós não sabemos ou não queremos conservar e guardar o que nos pertence, não temos direito de esperar que os outros façam melhor uso daquilo em que não têm nenhum interesse.

 

     Sempre pensei e procedi assim.

 

     No círculo limitado em que vivi, chamavam-me taciturno e misantropo.

 

     Não era. Era prudente e metódico. Adotava e seguia o processo que me parecia mais consentâneo com o resultado dos meus estudos sobre os homens e sobre as coisas; e seguindo agora o processo igual àquele com que me dei aí otimamente, suponho usar de um benefício conquistado pelo meu trabalho honesto.

 

     Procurei dar sempre aos outros a impressão nítida da síntese a que o meu espírito chegava, na resultante da elaboração metódica e regular dos meus raciocínios, naquilo sobre que fazia incidir o meu estudo. Podia errar, e muitas vezes errei; mas procurava destacar um cunho de honestidade e de retidão, o meu modo de ver e de apreciar.

 

     Diligenciei pôr em tudo uma réstia de luz, que aclarasse o que de natureza própria não era muito claro; e àquilo que não carecia de muita luz para iluminar-lhe o vulto, procurei pô-lo de modo que melhor pudesse ser visto e julgado.

 

     Claro é que muitas vezes me enganei; mas se eu, que buscava ser probo e consciencioso no meu trabalho, me enganei, o que terá sucedido a tantos que, por imprevidência, descuido ou maldade, só têm buscado confundir tudo, escurecer tudo. Apresentava as conclusões a que chegava. Era esse o meu fim.

 

     Mostrar os meios, os argumentos, as induções e deduções, o longo trabalho paciente e extenuante a que me entregava para chegar a essas conclusões, era supérfluo; e detestei sempre o supérfluo.

 

     Daqui sigo o mesmo processo.

 

     Cheguei rapidamente, logicamente, à conclusão de que o homem faz mal em entregar-se livremente, e de maneira desordenada, a saborear a ambrosia da ampla liberdade de pensamento, sem peias nem restrições. Isto digo para aí.

 

     Deve meditar-se que tudo tem um limite; e nada há que tenha limite mais próximo do que o pensamento humano, que se crer ser livre como o ar. Ora em verdade o ar é livre; mas a coisa mais flexível e diáfana estorva e impede a sua passagem.

 

     Assim, o pensamento é livre, mas a cada momento, o que proclama a sua liberdade, tem de reconhecer que as mais ligeiras reflexões tolhem a sua expansão.

 

     A razão, que é o equilíbrio das faculdades intelectuais coarta-lhe a cada momento os voos. É como uma águia presa por uma corrente a um rochedo.

 

     O pensamento pode mergulhar-se no infinito. Tem essa possibilidade; mas é como se mergulharmos a vista na escuridão. Olhamos mas não vemos nada. Ele sobe, profunda, tenta, mas só consegue saber que cada vez ignora mais.

 

     Nesse infinito vai reconhecer que o seu limite está adstrito ao pouco em que se constitui o seu conhecimento.

 

     Espraia-se em conjecturas, alonga-se em suposições, enriquece-se em hipóteses; mas depois de esforços sem nome, de tentativas sem conto, chega à triste realidade de que a verdade conhecida é uma poalha, insignificante conquista do seu trabalho.

 

     A sua ampla liberdade, liquida, por fim, no reconhecimento de que é uma desconsoladora ilusão. O pensamento ilimitado é como a vista na escuridão: esbarra nas trevas.

 

     Só pode ser livre nos mentecaptos, nos irrefletidos, nos irresponsáveis.

 

     Quanto mais poderoso e mais belo é o cérebro em que ele se elabora, maior é a responsabilidade da sua manifestação, e mais avultadas são as dificuldades que ele tem a vencer para ser livre.

 

     Deve dar muita volta dentro da caixa craniana, que lhe serve de receptáculo elaborante, de retorta purificadora, antes de conquistar o direito à sua expansibilidade fora do ser que o produziu. Deve ser como a língua, que deve dar muitas voltas na boca antes de proferir coisas que desconheça.

 

     Se a prudência aconselha tão úteis precauções, como há de dar-se-lhe a alforria absoluta?

 

     É verdade que se estabeleceu que a liberdade de pensamento seja só para a libérrima apreciação da ideia de Deus. Está convencionado que os livres pensadores sejam só negativistas.

 

     Na negação é que reside a liberdade. Ora, a negação, em filosofia, é a suprema manifestação do inexistente, como nas ciências concretas é a suprema manifestação da ignorância.

 

     Sendo a negação - o nada - a liberdade que essa negação representa equivale-se a nada também.

 

     Será desconhecimento, será preconceito, será orgulho: tudo coisas mesquinhas, de significação restrita e âmbito acanhado, e nunca a sintetização dessa amplidão infinita, sem raia e sem obstáculos, que evoca ao nosso espírito a ideia de pensamento livre.

 

     Em tudo que se não relacione com a ideia de Deus, não há livres pensadores. Até nesses, a razão humana força ao reconhecimento de dificuldades, muitas vezes insuperáveis, ao livre exercício do pensamento. Tem sempre que amoldar-se, modificar-se, segundo os assuntos sobre que tem de incidir.

 

     Só os irresponsáveis podem desconhecer as regras que a necessidade impõe aos homens de são juízo.

 

     Não deixa de ser verdade, porém, que a irresponsabilidade nem sempre é um triste direito só dos idiotas, é também, muitas vezes, uma conquista ou um apanágio dos maus ou dos inconsequentes.

 

     Se não pretendem usufruí-la em todos os atos vulgares da vida real e física, como a usufruem nos domínios inatingíveis da espiritualidade, é porque a sociedade organizou a sua defesa contra essa espécie de insubmissos, de eternos revoltados, de livres exploradores da vida, e corrige-os, e tolhe-lhes o amplo exercício de tão estranhas aspirações, ergastulando-os, e sequestrando-os ao seu convívio; limitando-lhes, assim, de um modo para eles muito lamentável, a vastidão sonhada do seu campo de ação.

 

     Ora, Deus não é como a sociedade. Não se defende. Deixa libérrima a ação ao homem para guiar aí a sua vida como lhe aprouver.

 

     No amplíssimo uso dessa liberdade amplíssima, vingam-se contra Ele, dos obstáculos que a sociedade lhes opõe; e conquistam, com grande entono de ousadia, o direito de se proclamarem livres.

 

     São livres contra Deus, como o são contra os espaços siderais; livres, mas presos à pequenez mesquinha da sua carcaça material; sem que, de fato, se desloquem da Terra onde estão agrilhoados.

 

     Fazem mal os que assim procedem.

 

     Esse inconsciente direito, essa grandiosa conquista da rebelião ignorante, é um mal que cedo reconhecerão, e de que amargamente pagarão o gozo.

 

     Atiram, de fato, fora o freio da ideia religiosa, adquirindo uma desenvoltura de pensar e de proceder, que lhes dá a ilusão da liberdade plena e do pleno domínio da sua vontade. Mas ficam-se no simples gozo dessa ilusão.

 

     O que se libertar de Deus, não se liberta da dúvida, nem do preconceito, e muito menos da repressão social que o cerca, cingindo-o, em todos os movimentos, como a própria atmosfera.

 

     Não fará senão o que os outros quiserem; não dirá senão o que os outros consentirem.

 

     O seu pensamento, que não encontra a ideia deísta nem o receio futuro a embargar-lhe o voo, encontra, todavia, como anteparo à sua ampla expansão, na Terra, a conveniência dos homens, a fiscalização da justiça humana, e a organização social da coletividade;

 

     Dentro destes três fatores de correção, ele vai topar com o obstáculo, frágil ou poderoso, mais sempre bastante, que não só lhe não deixa a ação livre, como lhe não permite a exteriorização do seu pensar, senão nos moldes que a sociedade adotou, como modelos clássicos, a que todos devem obediência.

 

     Há ainda indivíduos que constituem exceção à regra estabelecida? Há. Além dos iconoclastas, que presumem que da sua ação e das suas ideias há de vir, em súbito cataclismo, o desaparecimento de tudo que os cerca, como de um simples golpe do seu pensamento audaz desapareceu, para eles, o Deus que tanto preocupa os outros, há os criminosos - ou, pelo menos, assim considerados pelas leis sociais - que praticando atos de liberdade plena, como as feras, como elas, são perseguidos e monteados.

 

     Misturados com esses há ainda a plêiade dos ingênuos e dos simples, que se deixam seduzir por falazes ilusões, e por teorias vazias de senso comum.

 

     Deslumbra-os a novidade, ufana-os o orgulho de se proclamarem livres de alguma coisa, quando, no seu foro íntimo, se reconhecem animais destinados a toda a carga e a toda a prisão, e são conduzidos, como rebanho panúrgico por qualquer charlatão hábil.

 

     Sentem necessidade de estadearem uma independência que não têm, porque se subordinam, inconscientemente, ao mais atrabiliário dizedor de teorias arrevesadas e chochas, e ao primeiro sobressalto de remorso caem em si, em genuflexão de terror. Proclamam, constantemente, e em altas vozes, a sua independência, o seu livre-arbítrio, a sua vontade libérrima, o seu pensamento desempoeirado de velharias ou de preconceitos, para se darem à embriagadora ilusão de uma realidade que não existe.

 

     São inofensivos. Enganaram-se no caminho; mas não têm dificuldade em retroceder.

 

     Sentem sempre grande felicidade na confissão do erro, e põem todo o empenho no propósito da emenda. Não se enganarão mais; e são, depois, os de passo mais firme, mais serenos, de maior força e mais consciente audácia, no caminhar pela vida além.

 

     Boas almas, que a tentação desencaminha, mas de que nunca conseguirá fazer coisa ruim.

 

     Quem tiver o cérebro atreito a trabalho reflexivo, pense no que deixo dito, sem se importar com quem é que o diz.

 

     O nome, é uma marca; e não se mostra muito assisado quem adquire as coisas pela marca, e não pelo valor que representam.

 

     Passei aí a vida a compilar fatos para simular história, no propósito leal e honesto de querer orientar os que depois de mim viessem na conquista da verdade, e no desempoeiramento da lenda, que cercava, como pesada nebulosa, muito caráter mau, muito criminoso glorificado.

 

     Se agora volvo à Terra a dizer coisas inusitadas para muitos, é ainda no mesmo propósito leal e honesto de orientar quem, de boa-fé, se deixe arrastar em caminho errado e resvaladiço.

 

     Continuarão aí a admirar os ídolos que ajudei a escavacar? A culpa não é minha.    

 

     Continuarão a seguir um caminho errado na fantástica conquista da liberdade contra Deus, por a não poderem conseguir contra os homens, desprezando todos os salutares princípios de correção, de morigeração, de perfectibilidade, que a sua ideia representa ante a organização ferina da individualidade humana?

 

     A culpa também não será minha, porque, com o mesmo propósito altruísta, cumpro o meu dever, vindo proclamar a verdade.  (Espírito Joaquim Pedro D’Oliveira Martins - Obra: Do País da Luz 3).

 

 PRÓXIMO                                                                                                                                                                                INÍCIO                        

 

OBSERVAÇÃO DO COMPILADOR: Oliveira Martins (1845-1894) foi notável escritor e político. Historiador moderno, arrojado nas suas conclusões, deixou nos seus trabalhos um acentuado cunho da concisão, aliado à intenção judiciosa e justa. Cultivou a sociologia, a etnografia, a crítica e o jornalismo, mas foi como historiador e estilista que se consagrou.