Nesses dois quadros que retratam o rei Luís XI da França (1423-1483), vemos a galga favorita que ele a descreve na mensagem abaixo que deu a Allan Kardec em 1858. Fotos obtidas em www.wikipedia.org/

 

O REI E SUA GALGA

 (Comunicação do Espírito Luís XI - Revista Espírita de 1858)   

     Não me sentindo bastante firme para ouvir pronunciar o vocábulo morte, muitas vezes eu havia recomendado a meus oficiais que apenas me dissessem quando me vissem em perigo: “falai pouco.” E eu saberia o que isto significava.

     Quando não restavam mais esperanças, Olivier le Daim me disse duramente, em presença de Francisco de Paula1 e de Coittier:2

     - Majestade, temos que nos desobrigar de um dever. Não tenhais mais esperança neste santo homem, nem em qualquer outro; chegais ao fim; pensai em vossa consciência; não há mais remédio.

     A estas palavras cruéis operou-se em mim uma revolução completa: eu já não me sentia o mesmo homem e admirava-me de mim mesmo. O passado desenrolou-se rapidamente a meus olhos e as coisas me apareceram sob um aspecto novo. Um não sei quê de estranho se passava em mim. Fixando-me, o duro olhar de Olivier le Daim parecia interrogar-me. Para me subtrair a esse olhar frio e inquisidor, respondi com aparente tranquilidade:

     - Espero que Deus me ajude. É possível, talvez, que eu não esteja tão mal como pensais.

     Ditei minhas últimas vontades e mandei para junto do jovem rei aqueles que ainda me rodeavam. Vi-me só com o meu confessor, Francisco de Paula, le Daim e Coittier. Francisco me fez uma tocante exortação. Parece que a cada uma de suas palavras apagavam-se-me os vícios e a natureza retomava o seu curso. Senti-me aliviado e comecei a recobrar um pouco de esperança na clemência de Deus.

     Recebi os últimos sacramentos com uma piedade firme e resignada. A cada instante repetia: “Nossa Senhora de Embrun,3 minha boa Senhora, ajudai-me!”

     Terça-feira, 30 de agosto, pelas sete horas da noite, caí em nova prostração. Todos os presentes me julgaram morto e se retiraram. Olivier le Daim e Coittier, sentindo a execração pública, haviam ficado junto ao meu leito, já que não tinham outro asilo.

     Em breve recuperei completamente a consciência. Ergui-me, sentei-me na cama e olhei em torno. Não havia ninguém de minha família; nenhuma mão amiga procurava a minha, nesse supremo instante, para suavizar a minha agonia num último contato. Àquela hora talvez meus filhos brincassem enquanto seu pai morria. Ninguém pensou que o culpado ainda podia contar com um coração que compreendesse o seu. Procurei ouvir um soluço abafado e só ouvi as risadas dos dois miseráveis que estavam junto de mim.

     Divisei a um canto a minha galga4 favorita, que morria de velha. Meu coração pulsou de alegria, pois eu tinha um amigo, um ser que me estimava.

     Fiz-lhe um sinal com a mão. A lebreira arrastou-se com esforço até junto ao leito e veio lamber-me a mão agonizante. Olivier5 percebeu esse movimento; levantou-se de um salto, praguejando, e esbordoou a infeliz cadela com um bastão até matá-la. Expirando, meu único amigo lançou-me um longo e doloroso olhar.

     Olivier empurrou-me violentamente sobre o leito. Deixei-me cair e entreguei a Deus a minha alma culposa.

1 - Francisco de Paula (São), (1416-1507), fundador da Ordem dos Mínimos. Luís XI chamou-o na esperança de que ele lhe prolongasse a vida. 2 - Jacques Coittier ou Coictier foi médico de Luís XI e tinha grande influência sobre esse rei.  3 - Embrun é uma antiquíssima e pequena cidade do Sul da França. Seu antigo nome latino era Ebraduno. 4 - galga = Fêmea do galgo que é um cão pernalto e esguio, próprio para a caça de lebres. Luís XI (1423-1483) contribuiu para a unificação da França contra os senhores feudais. 5 - Olivier le Daim - Foi conselheiro do Rei e após a morte de Luís XI foi preso e acusado de roubo, assassinato, prisão arbitrária, etc. e enforcado em 1484. Notas do compilador.

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