Rio Tibre junto ao Monte Aventino. Foto www.wikipedia.org

Espírito de Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco. Romancista, cronista, crítico, dramaturgo, historiador, poeta e tradutor. Foi o primeiro escritor da língua portuguesa a viver exclusivamente dos seus escritos literários. 

Cópia de postal da década de 1920 - Cascata do Rio Reno na Suiça

 

SEMEEI MUITO, MAS MAL

(Comunicação do Espírito  Camilo C. Branco - Obra: Do País da Luz - volume 2 - Médium: Fernando de Lacerda)

    Minguada tem sido a oportunidade de escrever-te, meu amigo, ainda que avantajada tenha sido para isso a vontade minha. Não me tem sido possível; e não sei bem se de ti se pode dizer, com igual verdade, que te haja sobrado o desejo.

     Não te acuso, porém.

     Se me não tens chamado, não tens chamado outros; e não posso, portanto, magoar-me de preferências, que te não reconheço.

     Não tens perdido nada, todavia, com a minha falta.

     Outros enveredaram pelo caminho que abri, como sequiosos a quem se mostrasse a vereda que conduzisse à fonte de pura linfa cristalina.

     Após esses, outros virão; e louvo a Deus por ter permitido que fosse eu1 quem iniciasse, por ti, este movimento de expansão de espíritos brilhantes (exceção minha) em benefício dos que ainda se acham incrustados na concha pestilenta da carne.

     Carne! Já pensaste, algum dia, em que essa linda carne, rosada, alva ou dourada, acetinada como as pétalas de uma rosa, penujada como a casca odorífera de um pêssego de Amarante, recendendo a desejos, impregnada de volúpia; que tenta santos, perturba e estonteia ascetas; que perde o mundo e obriga a cometer as mais estranhas loucuras, se transforma, pela simples mordedela de um mosquito, em um montão de coisa podre, fedorenta, horrível de ver, impossível de tolerar?

     Já pensaste que, horas depois de o Espírito haver abandonado o rosado e roliço corpinho de uma criança, louro modelo de um Rubens precioso, a mãe não poderá beijá-lo, porque lhe inspirará o mesmo asco que o corpo de um cão morto, cheio de livores2 e vermes?

     Que o corpo da mulher mais bela: - escultural obra-prima do Criador, sonho encarnado, visão estonteadora de um sonho de fadas, tentação demoníaca do mais respeitável frade crúzio3, é, após a morte, a mais repelente montureira? Que, volvidos anos, depois da eliminação dos tecidos pela desagregação, pela fermentação pútrida, pelo desaparecimento molecular da carne, uma linda cara, rosto divino, que poetas e enamorados comparavam às estrelas, à flor, ao sol; onde havia dentes superiores a todas as pedras finas; olhos mais belos que todos os sóis; cabelos mais ricos que as mais ricas sedas, - tudo coisa de maravilha para que excelsos anjos do Senhor mal semelhavam sombra, só resta a máscara hórrida de uma caveira a fazer caretas; com buracos negros e repulsivos onde iluminaram os sóis; alvéolos vazios e carcomidos onde brilharam as pérolas; superfície lisa, estriada de ramificações negras, o espaço onde floresciam os cabelos que faziam a inveja do outro mais puro, do azeviche mais negro?

     Tu já pensaste nisso?

     Certamente que não. E creio que ninguém se deu ao trabalho sério de o fazer. Seriam tomados de tal horror que fugiriam uns dos outros, como na Idade Média se fugia dos leprosos e dos excomungados.

     Pois apesar de ser assim a matéria de que nesse mundo somos compostos, ainda o homem crê, na sua sabedoria suprema, que essa matéria prima da mais ascorosa podridão, é a coisa única em que se consubstanciam a sua individualidade e a sua grandeza; e tão grande e tanto à vontade dentro dela se sente, que passa a vida em busca de razões para se convencer a si próprio, de que, superior a isso, a essa coisa linda e podre, nada mais há; que as estrelas e os mundos que rolam pelo espaço infinito e que a sua vista não abrange, foram feitos para lhe iluminar o sono e as pândegas devassas em noturnas brigas; o Sol para lhe aquecer a beldade e alumiar os trilhos; as flores para lhe perfumarem o fedor próprio (se as flores se dignam considerar na sua alta prosápia). Tudo que a natureza produz vem, em dadivosa mercê, a seu conforto e regalo destinado.

     Já é cegueira!

     Dir-me-ão que também a tive.

     É verdade; a espaços a tive, porém. Na negrura da minha vida tive também muitas clareiras de fé; muitas iluminuras de crença.

     O pesar de que toda essa vida não fosse assim, e o preço por que paguei e pago tal pesar, me impõem o dever de procurar destruir agora toda a semente gafada que lancei à terra ruim, que a aceitou e reproduz em basta sementeira quanto de tredo4 lhe dei, e atrofia e maninha o que de bom lhe pretendi fazer produzir.

     Eu fui como o imprevidente lavrador, que não soube escolher a semente para lançar à terra.

     Na recolha da sementeira tudo servia. Trigo bom e trigo chocho; azevém5 e joio.

     Não fez seleção; tudo enchia celeiro, tudo alcançava o mesmo preço, tudo acogulava6 medida.

     Vêm as sementeiras, vai à tulha e leva de tudo.

     Lavra a terra, semeia, cobre, grada e espera.

     Decorre o tempo, o grão germina, lança raízes, que, como pequeníssimos tentáculos, haurem da terra a seiva de que se nutre, e perfura a crosta na ânsia de luz e de calor. Cresce. A lavoura semelha uma colossal esmeralda, onde todas as cambiantes do verde se combinam e brilham. Oferece à vista inexperiente do viandante o aspecto de uma seara rica de promessas; mas o olho esperto de um lavrador solerte não se enganará, e fará mondar, por vezes, a seara verdejante.

     O lavrador desleixado, porém, deixará crescer tudo por igual; e em curto trecho as plantas úteis serão atrofiadas, sobrepujadas, vencidas, pelas plantas maninhas e parasitas, que se desenvolverão à custa do enfezamento e da morte das outras.

     Volvidos meses o pobre lavrador segará uma bela seara de feno ruim, em vez de enceleirar uma boa colheita de pão. Haverá, certamente, por entre esse feno algumas pernadas7 de trigo bom, que soube e pôde resistir; mas o grosso do produto é coisa de baixo preço.

     Se a lição aproveitar, o desleixado e inesperto lavrador colherá ainda naquelas pernadas semente sã e útil, que no ano seguinte lançará previdente e cautelosamente à terra; se lhe não aproveitar, ficará mais gafado do que a própria gafa que a seara perdeu.

     Semeei muito, mas mal.

     A minha lavoura foi grande, verdejante, rica de tons e de palha, mas misérrima e paupérrima do bom grão, que pela minha morte colhi.

     Deplorei e chorei a minha inexperiência, quiçá o meu desleixo e a minha ambição; e procuro agora enceleirar o grão amigo e bom que pude apurar, e vou fazendo por lançá-lo à terra de novo, nestas pequenas leiras que tua mão amiga me levanta, esperançado de que, quando Deus permitir que lavre novamente largos tratos de terreno, tenha já boa e limpa semente para proveitosa colheita.

     Neste magoado protesto do descuramento do meu passado trabalho, fica advertência amiga aos que me seguirem na esteira. Cuide cada um mais em o que de bom possa produzir, de preferência ao que de muito possa deixar.

     A quantidade raras vezes se casa com a qualidade; e quanto ambas não possam caber no mesmo saco em proporção apetecida, que a ele vá só aquela das duas em que a riqueza e a beleza intrínseca se manifeste.

     Que colossal seara teria sido a minha, se nela tivesse predominado sempre a fé em Deus, a resignação na dor, a serenidade na adversidade!

     Nem teria sentido aí o estridor derrocante das ilusões amadas, nem a vertigem fúnebre do desespero me teria desvairado.

     Quando a luz dos meus olhos se apagou pela lufada da desgraça máxima, ter-se-iam iluminado os olhos da minha alma pelo clarão da conformidade e da fé; e eu não haveria arremessado o meu alquebrado e torturado corpo às gemônias8 do suicídio, ao antro do pavor!

     Quem imagina aí, nesse mundo refece9 e mau, que pavor representa o sossego à dor terrena, ao preço do suicídio conquistado?

     Meu amigo. Meu ou teu, isto que aqui fica, merece ler-se. Se não está com primores de estilo, com profundezas de conceito; com torturamento de frase tersa10 e rebuscada, está com sinceridade e verdade. E a verdade e sinceridade são tudo.

     Se a sua leitura não der bom repasto à gulodice de literatura aprimorada e esquisita, há de dar suculenta ração às almas simples, boas e meditativas. Nela os sequiosos da verdade hão-de ver, confrangidamente, a orla do abismo a que a inópia11 espiritual e a pretensão desarrazoada podem conduzir; e por cada um irmão nosso a quem estas palavras deem rebate do perigo que o aguarda, encoberto por enganosas teorias de bragantes12 negadores e de atrevidos sábios ignorantes, um pedaço de remorso se quitará à minha dor, e santa gota de bálsamo linimentará13 o meu desespero, pelo mal que semeei e pelo bem que não soube conseguir.

     Que te não moleste a negativa a nosso respeito.

     Depois de se negar Deus, que importa que me neguem e que neguem a verdade desta minha ação desinteressada?

     O que tu não sabes é o que representa para esses, se por desgraça sua os houver, a pergunta que aqui lhes deixo formulada em caracteres proféticos e terríveis, como os das palavras do festim de Baltasar: - E se for bem verdade que seja eu, Camilo, quem isto escreve, renegando a minha obra no que ela tem de impiedade e negação - veneno tredo14 que corrói as almas.  www.febeditora.com.br

Notas do compilador: 1 - O Espírito refere-se à obra "Do País da Luz" editada pela FEB, que teve como médium Fernando de Lacerda. Essa obra literária compõe-se de quatro volumes e nela os expoentes da língua portuguesa (desencarnados) nos brindam com páginas extraordinárias, visando o nosso aprimoramento moral e intelectual. 2 - livores = cores cadavéricas. 3 - crúzio = o que pertence à Congregação de Santa Cruz de Coimbra. 4 = tredo = traiçoeiro, falso. 5 = azevém = gramínea vulgar. 6 - acogulava = enchia demasiadamente. 7 = pernada = passada longa, primeiras e mais fortes ramificações das árvores (pode-se entender que o autor tenha dito plantação, cultura). 8 - gemônias = escadas do  monte Aventino que davam para o Rio Tibre e pelas quais, na Roma antiga, eram arrastados e lançados ao rio os corpos dos supliciados; desonra pública: arrastar alguém às gemônias. 9 - refece = que tem maus sentimentos, miserável, ordinário. 10 - tersa = pura, limpa, correta. 11 - inópia = falta de riqueza. 12 - bragantes = homens de maus costumes, velhacos, libertinos. 13 - linimentará = derivada de linimento, medicamento destinado a fricções. 14 - tredo = traiçoeiro.           PRÓXIMO                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                    INÍCIO

Pintura de Rembrandt retratando o festim de Belsazar (Baltazar). Este, filho de Nabucodonosor II, recolhe ricas peças de ouro do Templo de Salomão e promove grande festa; mas surge uma mensagem na parede escrita por uma mão afirmando "Deus tem abreviado os dias de Belsazar e serás vencido, o império babilônico será dado aos  Medos e Persas". Na mesma noite Baltazar, rei dos Caldeus, foi morto e Dario tomou o império para si.