Quarto de Leon Tolstoi - Foto www.wikipedia.org/

O REINO DE DEUS (TOLSTOI ENCONTRA ZAQUEU II)

(Espírito Léon Tolstoi - Médium: Yvonne A. Pereira - livro: Ressurreição e Vida).

     Mas nenhum deles sequer prestava atenção em minha insignificante pessoa... Não me olhavam, não me viam, e eu temia importuná-los dirigindo-lhes a palavra... Eram tantos os pretendentes ao aprendizado do Amor, ao redor deles! Eles tinham tantas preocupações, preparando-se, chocados, para o heroico apostolado!... E como eu era "publicano", um malvisto cobrador de impostos da alfândega romana, convenci-me, erroneamente, de que era por isso que não me recebiam, não obstante saber que entre os doze principais havia também um "publicano", o qual fora diretamente convidado pelo próprio Nazareno...1

     Recolhi-me então à minha mágoa imensa, sem todavia deixar de seguir, discretamente, os apóstolos, orando para que não tardasse o socorro a vir fortalecer a fé e a esperança que eu depositava naquele reino de Deus que havia de vir, reino cujas leis me fora dado entrever do verbo e das ações do próprio Messias esperado pelos homens de Israel.

     Recolhi-me, mas não desanimei.

     Continuava percebendo que Aquele Amor que, um dia, não se diminuíra em visitar minha casa, sentar-se à minha mesa e repousar sob o meu teto, continuava incentivando-me, prolongando suas atenções em torno dos meus passos. No fim de pouco tempo, de tanto ouvir as pregações dos seus apóstolos e dos outros setenta - fosse pelas Sinagogas, aos sábados, pelas praias e praças públicas ou pelos domicílios domésticos dos "santos", então frequentados pelos outros "santos" - eu aprendera os pormenores da Doutrina já exposta pelo Senhor.

     Por esse tempo, eu deixara Jericó, desligara-me das funções aduaneiras, dera parte dos meus bens aos pobres, conforme prometera a Jesus, provera, com a outra parte, recursos para minha família, distribuíra minhas terras entre os camponeses mais necessitados, reservando o estritamente necessário à minha manutenção pelos primeiros tempos. Fizera-me errante e vagabundo para acompanhar os discípulos e ouvi-los contar às multidões as conversações íntimas que o Senhor entretivera com eles, antes do Calvário e depois da gloriosa ressurreição.

     Como eu conhecesse bem as letras e as matemáticas, falando mesmo o grego, tão usado em Jerusalém, e também o latim, igualmente usado graças à influência romana, à parte os nossos dialetos da Síria, da Galileia e da Judeia, se me escasseavam recursos apresentava-me às escolas mantidas pelas Sinagogas. Empregava-me ali como adjunto dos escribas, para as lições aos jovens, ou então nas casas particulares ricas, como professor, e assim ganhava meu sustento. Mas se não houvesse lições a transmitir era certo que nunca faltariam madeiras a serrar, aqui ou ali; águas a carregar, a fim de saciar a sede das famílias; paredes a reparar nas casas dos romanos, os quais, se eram agressivos no trato pessoal com o povo hebreu, sabiam, no entanto, remunerar com justiça aqueles que os serviam, desde que não se tratasse de escravos.

     Um dia - foi em Jerusalém - correra a nova sensacional de que certo jovem fariseu, responsável pelo apedrejamento e morte do nosso querido Estevão, a quem o Espírito do Senhor inspirava com tantas glórias, acabara por se converter à Causa, porque o Senhor lhe aparecera em ressurreição triunfante, exatamente quando ele entrava na cidade de Damasco, para onde se dirigia tencionando prender os nossos "santos" domiciliados naquela localidade. Aparecera-lhe o Senhor e convidara-o diretamente para o seu ministério, como o fizera aos outros doze, antes de sua paixão e morte. E que, agora, já inteiramente aos desejos do Mestre Nazareno, com tremendas responsabilidades pesando-lhe nos ombros, conferidas pelo mesmo Mestre, pela primeira vez ia falar à assembleia dos discípulos, em Jerusalém, narrando o que se passara.

     Fui ouvi-lo.

     Esse fariseu era Saulo (Saul), o de Tarso, "que é também chamado Paulo".

     Contou ele, à assembleia silenciosa e atenta, o seu colóquio com o Nazareno, à entrada de Damasco, e logo conquistou o coração de muitos que se achavam presentes. Foi de pé (alguns se ajoelharam) que ouvimos os pormenores da aparição do Senhor a Paulo, e a conversa que tivera com ele mesmo, Paulo, e a sequência dos acontecimentos que envolveram Ananias, um dos nossos amados "santos" de Damasco. Muitos choraram, eu inclusive, e também Paulo.

     Se, no entanto, essa aparição fez a redenção de Paulo, de certo modo contribuiu para minha definitiva estabilidade na Doutrina do Mestre, porque daquele dia em diante tudo se modificou em minha vida.

     Nunca mais deixei Paulo, até hoje!

     Procurei-o então, em Jerusalém. Fui recebido com afeto e bondade. Fiz-lhe a minha confissão, o que não tivera coragem de fazer aos demais discípulos. Narrei-lhe os meus sofrimentos íntimos por Jesus. Quisera servi-lo, a ele, Jesus. Sinceramente o queria! Mas não sabia como iniciar nem o que fazer.

     Pelo amor de Jesus, Paulo ouviu-me com solicitude digna daquele mesmo Mestre que o admoestara em Damasco. E aconselhou-me, e guiou-me!

     Desse dia em diante, em vez de apenas ouvir as pregações em torno da Doutrina do Senhor e meditar sobre ela, pus-me a trabalhar também, por amor do mesmo Mestre, sob orientação de Paulo, que, como aquele, não desprezava "publicanos". Ele deu-me incumbências:

     "Não te limites à adoração inativa, que poderá cristalizar-se em fanatismo. A Doutrina de Jesus é afanosa por excelência... E ele precisa de servos trabalhadores, enérgicos, ágeis para mil e uma peripécias, de boa vontade para a propagação da Verdade que nos trouxe... Tu, que possuis noções da prática da beneficência, porque já a havias mais ou menos praticado antes do teu encontro com o Mestre, testemunha o teu amor por ele, servindo também aos teus irmãos que sofrem ou erram, pois tal é o segredo da boa prática da nova Doutrina. Nenhum de nós será tão pobre que não possa favorecer o próximo com algo que possua para distribuir: o pão, o lume, o agasalho, o bom conselho, a advertência solidária, a assistência moral no infortúnio, o ensinamento do Bem, a lição ao ignorante, a visita ao enfermo, o consolo ao encarcerado, a esperança ao triste, o trabalho ao necessitado de ganhar o próprio sustento honrosamente, a proteção ao órfão, o seu próprio coração de amigo e irmão em Cristo, a prece rogando aos Céus bênçãos que aclarem os caminhos dos peregrinos da vida, o perdão àqueles que nos ferem e nos querem mal..."

     De tais conselhos fiz, então, o meu lema.

     Em vez de só ouvir falar do Mestre, pus-me a falar, eu mesmo, dele e da sua Doutrina, que teoricamente eu já conhecia bastante; dos seus atos, das maravilhas que operara por entre os doentes, os pecadores e os desgraçados, pois eu o conhecera, estava devidamente informado a seu respeito. E, se não curei leprosos, estanquei a aflição de muitas lágrimas com exposições em torno dele. Se não levantei paralíticos, pelo menos ergui a coragem da fé em muitos corações desanimados ante a incúria pelas coisas santas. Se não expulsei demônios, é certo que alijei o ateísmo, recuperando almas para o dever com Deus. E se não ressuscitei mortos renovei esperanças na alma de muitas matronas desgostosas com a indiferença dos próprios filhos na prática do Bem, revigorei a decisão de muitos pecadores que temiam procurar o bom caminho, porque envergonhados de se apresentarem a Deus, pela oração, a fim de se renovarem para jornadas reabilitadoras. E, assim, minh'alma se alegrava em Cristo, dilatavam-se os meus propósitos de progresso... E eu sentia que, de dia para dia, quando orava, mais incidiam sobre mim forças e novas bênçãos para mais me desdobrarem em operações objetivas, que tendiam a me fazer comungar com a vontade daquele Unigênito dos Céus, que um dia penetrou os umbrais pecaminosos de minha casa para me levar  salvação.

     E encontrei, então, dentro de mim próprio, aquele Reino de Deus que ele anunciara... Encontrei-o na paz do dever cumprido, que me embalava o coração...

     Eu ouvia, embevecido, a empolgante exposição daquele Zaqueu, cujo nome, no Evangelho atraía as minhas simpatias, mas a quem as referências são mínimas, no livro santo. Mas acontecia que a força mental do humilde discípulo do Nazareno distendera em torno um círculo de luz fulgurante, o qual nos envolveu a todos, e nos levou a vibrar com ele, e nos dominou a vontade, submetendo nossas vontades à vontade dele próprio, nosso pensamento ao seu pensamento, nosso sentimento ao seu sentimento, nosso raciocínio ao seu raciocínio, tal se, completamente mergulhados nas ondas das suas irradiações, ficássemos à sua mercê para lhe obedecermos às sugestões. Era a "faixa vibratória" dele mesmo, onda transmissora do pensamento, capaz dos mais belos feitos psíquicos, que nos atingia e dominava. Então, o mais edificante foi que o pensamento de Zaqueu e suas recordações, revividas nos haustos de uma expansão solene, criaram novamente os fatos passados e nos deram a presenciar com ele tudo quanto era narrado. Seguimo-lo, assim, em suas idas e vindas atrás dos discípulos do Cristo. Presenciamos suas silenciosas lágrimas, seus sofrimentos ante a dificuldade em iniciar o ministério do Bem, expandindo objetivamente o que já existia no íntimo do seu coração. Com ele vagamos, chorosos, pelas praias de Cafarnaum, recordando as prédicas sublimes que não mais se ouviam, mas às quais os discípulos nunca deixavam de se referir durante as exposições da Boa Nova para o povo... E, desse modo, quantas vezes com ele subimos o Calvário, sob a nostalgia do crepúsculo, vendo-o chorar, sozinho e sofredor, a saudade daquele que ali expirara para legar ao mundo o patrimônio do Amor! E aprendemos com ele, vendo-o agir, como se pratica o verdadeiro Bem, como se estancam as lágrimas da desgraça e se recupera o pecador para o dever, ocultamente, silenciosamente, sem os alardes da vaidade nem os elogios da História, fiel a um ministério santo, incansável, em torno das criaturas sofredoras, pelo amor de Jesus cristo...

     Foi esse um dos mestres que encontrei aquém do túmulo. Seus ensinamentos, os exemplos de ternura em favor do próximo, que me deu, revigoraram minhas forças. Sob seus conselhos amorosos orientei-me, dispondo-me a realizações conciliadoras da consciência.

     E se tu, meu amigo, desejas encontrar aquele Reino de Deus de que Jesus dá notícias, ama os desgraçados! Cada lágrima que enxugares em seus olhos, cada conselho bom que dispensares ao pobre desarvorado da vida é mais um passo que darás em direção a esse Reino que, finalmente, encontrarás dentro do teu próprio coração, que assim aprendeu o cumprimento da suprema lei: Amor a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo...

Nota do compilador: 1 = O apóstolo Mateus também era publicano (cobrador de impostos).                                        

 INÍCIO                                                                                                                                        

HÁ  HOMENS  QUE  NO  USO  QUE  FAZEM  DA  INTELIGÊNCIA,  ENVERGONHARIAM  OS  CÃES,  SE  ESTES  TIVESSEM  A  DESGRAÇA  DE  OS  CONTAREM  NA  SUA  RAÇA