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EÇA NO ALÉM-TÚMULO

(Artigo ditado pelo Espírito José Maria Eça de Queirós - Obra: Do País da Luz - Médium: Fernando de Lacerda).

Nota do compilador: Eça nos conta, em fina linguagem, sua surpresa ao se encontrar no Plano Espiritual. Nota-se, no início, que ele viu aqueles desencarnados que lá chegavam após terem levado uma vida simples e sofredora, porém vivido com dignidade, e que a recepção para eles era melhor do que para si próprio.

     Eu, grande na minha terra, literato laureado, candidato notável ao posto de guarda portão do Monteiro Milhões, era assim tão rudemente tratado, via serem recebidos com todo o carinho e aceitação, bandos sucessivos de miseráveis esfomeados, farrapentos, torturados, anônimos dos hospitais e das mansardas, que traziam o sofrimento marcado nos fundos sulcos do rosto, como os antigos forçados1 traziam a marca do ferrete braseado.

     E pus-me a cogitar: - mas que gente é esta aqui, que recebe tão hospitaleiramente os maltrapilhos, e repudia e maltrata as pessoas limpas como eu?

     Observemos. Isto deve ter por força explicação estranha.

     Antes de prosseguir no  meu caminho para o destino que me haviam assinalado, coloquei-me em observação.

     Não me meti de permeio com a turba multa, porque me enojei. Lembrei-me daquelas maravilhosas peregrinações a Lourdes, trescalando a umidade, a suor e a porcaria; e pus-me a sítio largo, mas conveniente.

     Comecei a ver. Eram pobres que tinham passado pela terra curvados ao jugo férreo da dor, sempre resignados, sempre crentes em Deus, sempre bons!

     Companheiros inseparáveis da lágrima e da fome, passaram todo o tempo como párias2 pacíficos, louvando ao Deus que lhes mandava as suas privações e os seus tormentos, sem um grito de revolta, sem uma blasfêmia de maldição.

     Todos eles traziam na sua rota escarcela3 uma boa ação, pelo menos; uma prova de bondade, de dedicação e de carinho.    

     Noites desveladas à cabeceira de um pai ou de um filho, orando ao Deus de paz e amor, que mal sonhavam existir; bendizendo o Deus de dor e de tormento que lhes levava esse filho ou esse pai; dias avergados ao trabalho extenuante, para entreter a fome dos filhos andrajosos, sem um protesto, com o riso nos lábios, o carinho na alma e o agradecimento ao Deus invisível que lhes dava aqueles filhos, que eram o instrumento do seu cansaço e do seu martírio, o riso do seu amor, e a felicidade da sua vida!

     Filhos dedicados que se privaram do indispensável para darem o bastante, e às vezes o supérfluo, aos seus trêmulos velhinhos, pedindo ao Deus, que não conheciam, a conservação desses velhinhos, que eram o tormento material da sua vida, mas a alegria consoladora da sua alma.

     Estranhos que amavam e serviam o seu semelhante, numa abnegação para mim desconhecida e que suporia impossível na Terra. Legião enorme de boas almas, que não conheciam gramática, mas que praticavam o bem e o amor; onde se não cultivava a ironia, a mordacidade ou a maledicência, mas onde se afervorava o culto pela amizade, pela abnegação.

     E pasmei então por nunca ter encontrado na Terra semelhante gente. Pareciam-me de um outro mundo; magos esfarrapados de longínquas regiões orientais, onde as castas abastardadas vegetam na torturada abjuração do ideal emancipador. E ria-me deles no egoístico confronto das nossas diversíssimas personalidades; e a cada momento interrogava-me sobre o que iria suceder àquela multidão cosmopolita e babilônica, onde o cabelo fulvo se mesclava com as tranças azevídicas4; onde a tez morena, muito minha conhecida e amada das mulheres de Avintes e das boêmias de Andaluzia, se baralhava com o branco lácteo das women londrinas ou das pálidas e rechonchudas holandesas.

     Vasto ciclorama; pandemônio universal onde se falavam ao mesmo tempo todas as línguas conhecidas nas ruidosas arengas de uma feira sevilhana, ou na disputada conversação de sete algarvios meus patrícios, e se compreendiam todos numa maravilhosa uniformidade de pensamento.    

     Aqueles a quem a ignorância terrena não permitiu libar o falerno da asneira, nem rilhar a maçã da sabedoria, lá iam, humildes, resignados, como grandes rebanhos de ovelhas brancas, despindo os  andrajos e envergando túnicas alvas como o jaspe; cantando hinos e subindo, subindo, em luminosas ondulações, como ciclópicos cachos de anjos das gravuras de Gustavo Doré; e outros a quem a tarântula da vaidade ou o lacrau5 do orgulho haviam envenenado o sangue dessorado do seu tortulhado corpo carnal, desciam, ruindo blasfêmias, sem a consolação de um olhar carinhoso nem o vislumbre de uma esperança cara, para as regiões das trevas, para os plainos de horror!

     Comecei então a compreender; e aos meus ouvidos começaram a martelar aquelas lindas frases do Evangelho: - Os últimos serão os primeiros. Deixai vir a mim os pequeninos e os humildes, porque deles é o reino dos Céus.

     Arranquei-me daquela contemplação. Quis convencer-me de que não era bem um daqueles sonhos com que o estonteante clima de Paris me delirava o cérebro, depois de uma ceia no Mabile ou no Café Inglês, onde o champanhe se bebesse pelos bicos rosados das tetas das cocottes, até cairmos sob a mesa que os cristais baratos e as iguarias raffinées da cozinha francesa pejavam e ornamentavam, no báquico deslumbramento de uma orgia hors ligne.

     Não foi coisa fácil, tão estranho e tão imprevisto era o quadro que sucessivamente se deparava ao meu olhar espantado.

     Valeu-me ainda a minha consciência, que gritou naquele velho tom de tarimbeiro que eu lhe conhecia há longos anos, que acordasse, que eram horas de seguir o meu destino.

     Obedeci, atordoado. Segui passivamente no primeiro rancho onde deparei o riso.

     Não podia viver sem ele. Os que saindo dos andrajos repelentes, entravam nas suas roupagens brancas como roupeiras que se envolvessem em algodão em rama, não me seduziam.    

     Choravam e rezavam; e eu não soube nunca haver-me bem com quem rezasse ou choramingasse. Lá me fui de longada com os que riam despreocupados, indiferentes, de consciência serena, sem ambições nem desfalecimentos, sem tristeza nem doloridas manifestações de arrependimentos tardios. Artistas, poetas, estróinas6, mulheres galantes, a quem a virtude não pesou muito, boêmios sem bagagem escarcela vazia e pele ao léu.

     Por lá nos espalhamos, apertando as mãos e rindo, rindo, numa grande comoção de riso e alegria: - hino monumental composto de notas cristalinas como as de cristal de rocha, ao Pai, ao Deus que numa magnânima manifestação da sua bondade divina permitia que lançássemos o riso bom através dos mundos e através dos tempos, como supremo protesto contra os grotescos da exótica personalidade humana.

     E agora, amigo, que me fiz justiça, adquiro direito de justiçar os outros.

Notas do compilador: forçados = Os condenados a trabalhos forçados; 2 - párias = Homens desprezados, repudiados pelos demais; 3 -  Escarcela = Parte da armadura que protegia o ventre e as coxas do cavaleiro; bolsa de couro que se usava à cintura; 4 - azevídicas = Refere-se à cor muito preta: cabelos de azeviche; 5 = lacrau = escorpião; 6 - estroinas = extravagante, doidivanas, boêmio, dissipador.

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NEGAR SEM CONHECER É SUPOR QUE A HUMANIDADE SÓ SE COMPÕE DE TOLOS