MAIOR BATALHA - QUARTA PARTE

     "- Vede, meus amados - prosseguiu Antélio - este mar de cadáveres, de combatentes inertes...

     Extinguiu-se, há poucos segundos, a sinfonia de Marte ou do pavor, vibrada pelos canhões e pelas metralhadoras... É isto um campo de batalha: a desolação, a lágrima, o desespero, a podridão, a derrocada da juventude, esperanças e aspirações fagueiras! Como a alma se confrange e soluça ao deparar-se-lhe este painel tétrico e vívido, pincelado pela crueldade humana, em que os nossos irmãos, imbuídos de paixões malsãs, se trucidam impiedosamente, em vez de se estreitarem num amistoso amplexo... Ai! deles! Vede a realidade dolorosíssima neste reduto juncado de corpos, onde não palpitam mais os corações... Como estão irmanados sobre a terra que ensanguentaram! Quem distingue, neste instante, aqui ou além, os teutos, os austríacos, os franceses, os belgas, os invasores e os defensores, agora que Átropos36 e as trevas os identificaram nas fardas e no destino?

     Parece que um ciclone os derrubou ou foram ceifados na seara da Guerra... Chegou o momento em que o homem - seja qual for o lugar em que abriu os olhos no mundo - recebe o derradeiro batismo terreno - o da denominada Morte: chama-se finado!

     O primeiro, é o da vida orgânica... Dão-no os pais, entre sorrisos e carícias, olvidados de que receberam nos braços um candidato à dor e ao pranto. Chamam-lhe - criança - uma designação extensiva a todos os recém-emigrados37 do Espaço, de ambos os sexos indistintamente; o segundo é o do templo - transforma a denominação coletiva em nome adstrito a um só ente, que necessita criar a sua individualidade, é o batismo da água; o terceiro é o de Átropos - perde a designação que lhe deu o sacerdote ou o registo civil - torna-se anônimo, chama-se cadáver. É a segunda nivelação de um ser humano na existência planetária, a derradeira neste orbe de iniquidades. Eis, pois, todos os antagonistas irmanados para todo o sempre, neste campo mortuário. Não há mais distinção de castas, de religião, de posições sociais...

     Extinguiram-se todos os preconceitos humanos.

     Estão todos nivelados e confraternizados pela lei irrevogável da Morte. Pendem-lhes, inúteis, das mãos que se tornaram empedernidas, as armas homicidas...

     Homens, meus irmãos, quando ouvireis as vozes de Jesus, que vos aconselha amar-vos uns aos outros? Não compreendeis que sois ovelhas de um só rebanho e que o celeste Pegureiro,38 das alturas consteladas, lança-vos um cajado de luz - o Evangelho - apontando-vos os apriscos cintilantes, engastados no Infinito, vossas futuras habitações? Desconheceis as suas leis sacrossantas, de amor e perdão? Sois feras cervais que vos nutris de sangue e carne?

     Retrocedei, irmãos, voltai-vos para as glórias eternas, para os bens imperecíveis, os que não podem ser conspurcados pela calúnia, pela inveja, pela cobiça, os tesouros que não apodrecem como os vossos corpos, nos sepulcros, mas irão intactos aos páramos siderais - a virtude, a abnegação, a fraternidade, o cumprimento austero de todos os deveres morais e psíquicos!"

     Houve nova pausa: depois, com estranha emoção, prosseguiu:

     "- Ó França amada e magnânima! sempre na vanguarda das ideias generosas, meu Espírito, neste instante, chora os teus infortúnios, sente as tuas desventuras, mas, é forçoso dizer - e a voz da Justiça não treme quando profere a verdade - que, rememorando páginas trágicas da tua História imortal, tinhas a resgatar gravames perpetrados por teus filhos de antanho, - os mesmos que, hoje reencarnados, pelejam nas tuas fileiras, em prol do direito dos povos e da Liberdade, - quando teus esquadrões temerosos levavam a inquietação, o clamor, o alarma e o luto às nações limítrofes, e até às longínquas regiões asiáticas e eslavas, onde sofreste perdas irreparáveis, cavaste a ruína de teus exércitos - com que desejavas cobrir a face do globo terráqueo - foste a causadora do incêndio de Moscou e da hecatombe pavorosa nos gelos da Rússia...

     Tu, sempre com ideias grandiosas, que tens como lema fulgurante - Liberdade, Igualdade, Fraternidade - te deixaste fascinar, outrora, por sonhos de poderio e conquistas infindas e, por isso, acendras,39 com paroxismos de dor, as atrocidades cometidas; estás reabilitando passados delitos, para que tornes em realidade a legenda bendita que escolheste, de acordo com as potências siderais...

     Caminhas para a execução desse luminoso objetivo, que é o do próprio Criador do Universo. O teu martírio atual te redime de todas as iniquidades perpetradas no tempo do imperialismo, dos monarcas de ambição desmedida...

     Já estão assestadas para o teu coração radioso - Paris - as bombardas de longo alcance, já o sentes ferido, mas não cativo, porque tens a proteger-te amigos desvelados, falanges visíveis e invisíveis aos mortais, do Espaço, daquém e dalém mar, porque tens a contrabalançar ações condenáveis, feitos grandiosos e inesquecíveis! Suporta o teu suplício com denodo, a fim de fazeres jus a um triunfo sem jaça. Reivindicarás direitos postergados, serás escudada por paladinos leais do Velho e do Novo Continente, ávidos, alguns, por saldarem contigo os débitos sagrados de sua independência, de que foste auxiliar abnegada, mas não entenebreças40 a tua vitória com represálias soezes...41

     França querida, não é só o teu território que abriga os mais acerbos padeceres... A dor estenderá seus tentáculos além do Atlântico, disseminar-se-á por todo o globo: o cortejo sinistro da fome e de atroz pandemia seguirá à ceifa das batalhas cruentas, pois quase cessaram os labores agrícolas e dos operários, e a atmosfera se acha intoxicada de exalações mefíticas,42 oriundas do morticínio em tuas fronteiras e nas da Itália, Bélgica, Sérvia...

     Exércitos imperceptíveis aos encarnados - compostos dos que sucumbiram na hecatombe mundial, que se acha ainda nos pródromos43 - povoarão o Espaço e o ambiente terreno por algum tempo; receberão inolvidáveis instruções de humanitarismo, a fim de que abominem o assassínio coletivo ou individual, para que depois, aguerridos com as armas cintilantes da sinceridade, do amor ao próximo, dos ideais generosos, possam baixar a este planeta, profligando44 os erros seculares, combatendo pelas verdades imanentes do Alto, pelas coisas meritórias, pela implantação do regime da Justiça e da Equidade, iniciando-se, assim, a era das reivindicações sociais, do nivelamento dos povos; enfim, do reinado da Paz predita por Jesus - cujos ensinamentos os homens esqueceram...

          A Terra - o mísero grão de areia que baila nos ares ao influxo do Sol, qual pequenina mariposa ao redor de intenso combustor - no transcurso, dos evos45 futuros não terá, ao todo, senão três pátrias distintas - os Continentes, tendo por linhas delimitadoras apenas os Oceanos, cada um deles concretizando - ó França querida! - os dizeres do teu lema inspirado pelos mensageiros divinos - Liberdade, Igualdade, Fraternidade, tríade sublime que constitui o anelo das almas nobres e funde-se num só vocábulo - Amor - que, hoje, parece utopia, mas essa considerada utopia é o sonho do Criador, e, o que Ele sonha ou deseja, será uma luminosa realidade porvindoura!...

     Então, ninguém mais será fratricida ou duvidará da pluralidade das existências, tendo de remir no futuro os delitos do passado obscuro e remoto. Ninguém mais quererá saldar débitos que terá de saldar penosamente, com prantos e duras provas. Todos compreenderão que, aqui, as criaturas humanas se congregam, para laborar em comum por seu progresso espiritual, para resgate de dívidas tenebrosas, para se harmonizarem, e não têm pátrias fixas, são aves nômades, partem para onde floresça a Primavera, esquecem os berços primitivos que lhes recordam o Inverno - a penúria, as expiações tremendas - até que, depois de adquiridas todas as virtudes, cumpridos todos os deveres sacrossantos, burilados os Espíritos pelo sofrimento remissor, recordam-se de todos os seus estágios, de todos os países em que mourejaram e padeceram, fundindo-os em um só, que amam santamente, sem exclusivismo, como o Cristo amava a Humanidade - este planeta, um dos degraus que formam a escada incomensurável que todas as lamas têm de galgar em busca do Ente Supremo!

     Saberão que os Espíritos, quando libertos dos grilhões mundanos, andorinhas imortais, fugidas às ásperas invernias da Terra - onde deixam seus sudários putrescíveis - buscam asilo em ninhos distantes, isto é, em regiões suaves, onde poderão viver serenamente, sem os rigores polares das provas planetárias.

     Essas pátrias de doçura inefável e sem estações frígidas, não existem neste orbe - e sim, além, onde pulsam os corações de ouro das estrelas...    

     Sonhando com essa Primavera, todas as almas que a ela aspiram sempre, desfar-se-ão do egoísmo, do sectarismo, da impureza, dos sentimentos ignóbeis - correntes brônzeas que as vinculam aos sofrimentos terrenos - e partirão exultantes, em demanda da Luz e da Felicidade eternas...

     Que lhes importa, então, um fragmento de solo, larvado de sepulcros, ao qual se acham apenas aprisionados pelos liames de reminiscências pungentes? Aqui virão, apenas, em cumprimento de excelsas missões, para guiar seus antigos companheiros de cativeiro às plagas da Liberdade eterna. Aqui, então, já não hão de imperar mais as forças armadas, mas o Direito e a Justiça.

     Os soldados destruidores serão rendidos pelos paladinos do Bem e da Paz... e este orbe, maculado tantas vezes com massacres e morticínios inúmeros, será uma das mansões de harmonia e labor do Cosmos, à qual virão acrisolar-se os Espíritos secularmente votados ao Mal, rebeldes e ferozes, degredados, há muito, em mundos de trevas, em calabouços do Universo...

     Partamos, agora, diletos amigos, para a região que sempre viverá nos escaninhos de nossas almas - Aprémont - e, lá, longe deste cenário lúgubre (em que os pensamentos nobres e altruísticos ricochetam à mente, como fagulhas estelares interceptadas por abóbada de chumbo, murados pelas impurezas que desprendem os que se odeiam, os que sucumbem sem se voltar para o Pai celestial, sem uma prece, blasfemando, às vezes), faremos rogativas fervorosas por todos os combatentes, por todos os que se acham em agonia, por todos os desencarnados, indistintamente, vencedores e vencidos, nossos irmãos em Deus... (Espírito Victor Hugo - Obra: Do Calvário ao Infinito - Médium: Zilda Gama).       INÍCIO

36 - ÁTROPOS - (mit. grega), das três Parcas (mit. romana) - deusas do inferno, a que cortava o fio da vida. 37 - RECÉM-EMIGRADOS - nascidos recentemente. 38 - PEGUREIRO - Pastor (referiu-se ao Cristo). 39 - ACENDRAS - limpas; depuras; purificas. 40 - ENTENEBREÇAS - cubras de trevas; escureças. 41 - SOEZES - torpes; indignas. 42 - MEFÍTICAS - cheiros repugnantes, impróprios à respiração; asfixiantes. 43 - PRÓDROMOS - início; começo. 44 - PROFLIGANDO - destruindo. 45 - EVOS - eternidade.