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Morzine - França, atualmente - Foto www.wikipedia.org/

 

 

OBSESSÃO: CAUSAS E COMBATE

(Autor: Allan Kardec - Revista Espírita de 1862).

     As observações que fizemos sobre a epidemia que abateu, e abate ainda, a comuna de Morzine, na Alta Sabóia, não nos deixam dúvidas quanto à causa. Mas, para apoiar nossa opinião, devemos entrar em explicações preliminares, que melhor destacarão a analogia desse mal com os casos idênticos, cuja origem não poderia oferecer dúvidas a quem esteja familiarizado com os fenômenos espíritas e reconheça a ação do mundo invisível sobre a humanidade. Para tanto faz-se mister remontar à fonte do mesmo fenômeno e seguir-lhe a gradação, desde os casos mais simples e, ao mesmo tempo, explicar como ele se processa. Daí deduziremos muito melhor o meio de combater o mal. Posto que já tenhamos tratado do assunto no Livro dos Médiuns, no capítulo da obsessão, e em diversos artigos na Revista, aduziremos algumas considerações novas, que tornarão a coisa mais fácil de entender.

     O primeiro ponto que importa bem se compenetrar, é da natureza dos Espíritos, do ponto de vista moral. Não sendo os Espíritos senão as almas dos homens, e não sendo bons todos os homens, não é racional admitir-se que o Espírito de um perverso de súbito se transforme. Do contrário seria desnecessário o castigo na vida futura. A experiência confirma esta teoria ou, melhor dito, a teoria é fruto da experiência. Com efeito, mostram-nos as relações com o mundo invisível, ao lado de Espíritos sublimes de sabedoria e de conhecimento, outros ignóbeis, ainda com todos os vícios e paixões da humanidade. Após a morte, a alma de um homem de bem será um bom Espírito; do mesmo, encarnando-se, um bom Espírito será um homem de bem. Pela mesma razão, ao morrer, um homem perverso dará um Espírito perverso ao mundo invisível. E, assim, enquanto o Espírito não se houver depurado ou experimentado o desejo de se melhorar. Porque, uma vez entrado na via do progresso, pouco a pouco se despoja de seus maus instintos: eleva-se gradativamente na hierarquia dos Espíritos, até atingir a perfeição, acessível a todos, pois Deus não pode ter criado seres eternamente votados ao mal e à infelicidade. Assim, os mundos visível e invisível se penetram e alternam incessantemente; se assim podemos dizer, alimentam-se mutuamente; ou, melhor dito, esses dois mundos na realidade constituem um só, em dois estados diferentes. Esta consideração é muito importante para melhor compreender-se a solidariedade entre ambos existente.

     Sendo a Terra um mundo inferior, isto é, pouco adiantado, resulta que a imensa maioria dos Espíritos que a povoam, tanto no estado errante, quanto encarnados, deve compor-se de Espíritos imperfeitos, que fazem mais mal que bem. Daí a predominância do mal na Terra. Ora, sendo a Terra, ao mesmo tempo, um mundo de expiação, é o contato do mal que torna os homens infelizes, pois se todos os homens fossem bons, todos seriam felizes. É um estado ainda não alcançado por nosso globo; e é para tal estado que Deus quer conduzi-lo. Todas as tribulações aqui experimentadas pelos homens de bem, quer da parte dos homens, quer da dos Espíritos, são consequências deste estado de inferioridade. Poder-se-ia dizer que a Terra é a Botany-Bay dos mundos: aí se encontram a selvageria primitiva e a civilização, a criminalidade e a expiação.

     É, pois, necessário imaginar-se o mundo invisível como formando uma população inumerável, compacta, por assim dizer, envolvendo a Terra e se agitando no espaço. É uma espécie de atmosfera moral, da qual os Espíritos encarnados ocupam a parte inferior, onde se agitam como num vaso. Ora, assim como o ar das partes baixas é pesado e malsão, esse ar moral é também malsão, porque corrompido pelas emanações dos Espíritos impuros. Para resistir a isso são necessários temperamentos morais dotados de grande vigor.

     Digamos, entre parênteses, que tal estado de coisas é inerente aos mundos inferiores. Mas estes seguem a lei do progresso e, atingindo a idade precisa, Deus os saneia, deles expulsando os Espíritos imperfeitos, que não mais se reencarnam e são substituídos por outros mais adiantados, que farão reinar a felicidade, a justiça e a paz. É uma revolução deste gênero que no momento se prepara.

     Examinemos, agora, o modo de ação recíproca dos encarnados e desencarnados.

     Sabemos que os Espíritos são revestidos de um envoltório vaporoso, que lhes forma um verdadeiro corpo fluídico, ao qual damos o nome de perispírito, e cujos elementos são tirados do fluído universal ou cósmico, princípio de todas as coisas. Quando o Espírito se une a um corpo, aí vive com seu perispírito, que serve de ligação entre o Espírito, propriamente dito, e a matéria corpórea: é o intermediário das sensações percebidas pelo Espírito. Mas esse perispírito não é confinado no corpo, como numa caixa. Por sua natureza fluídica, ele irradia exteriormente e forma em torno do corpo uma espécie de atmosfera, como o vapor que dele se desprende. Mas o vapor que se desprende de um corpo malsão é igualmente malsão, acre e nauseabundo, o que infecta o ar dos lugares onde se reúnem muitas pessoas malsãs. Assim como esse vapor é impregnado das qualidades do corpo, o perispírito é impregnado das qualidades, ou seja do pensamento do Espírito e irradia tais qualidades em torno do corpo.

     Agora outro parêntese para responder a uma objeção oposta por alguns à teoria dada pelo Espiritismo do estado da alma. Acusam-no de materializar a alma, ao passo que, conforme à religião, a alma é puramente imaterial. Como a maior parte das outras, esta objeção provém de um estudo incompleto e superficial. Jamais o Espiritismo definiu a natureza da alma, que escapa ás nossas investigações. Não fiz que o perispírito constitua a alma: o vocábulo perispírito diz positivamente o contrário, pois especifica um envoltório em torno do Espírito. Que diz a respeito o Livro dos Espíritos? “Há no homem três coisas: a alma, ou Espírito, princípio inteligente; o corpo, envoltório material; o perispírito, envoltório fluídico semimaterial, servindo de laço entre o Espírito e o Corpo”. E porque, com a morte do corpo, a alma conserva o envoltório fluídico, não está dito que tal envoltório e a alma sejam uma só e mesma coisa, pois que o corpo não é único com a roupa ou alma não é una com o corpo. A doutrina Espírita nada tira à imaterialidade da alma: apenas lhe dá dois invólucros, em vez de um, durante a vida corpórea e só um após a morte do corpo, o que é, não uma hipótese, mas um resultado da observação. E é com o auxílio desse envoltório que melhor se compreende a sua individualidade e melhor se explica a sua ação sobre a matéria.

     Voltemos ao assunto.

     Por sua natureza fluídica, essencialmente móvel e elástica, se assim se pode dizer, como agente direto do Espírito, o perispírito é posto em ação e projeta raios pela vontade do Espírito. Por esses raios ele serve à transmissão do pensamento, porque, de certa forma, está animado pelo pensamento do Espírito. Sendo o perispírito o laço que une o Espírito ao corpo, é por seu intermédio que o Espírito transmite aos órgãos, não a vida vegetativa, mas os movimentos que exprimem a sua vontade; é, também, por seu intermédio que as sensações do corpo são transmitidas ao Espírito. Destruído o corpo sólido pela morte, o Espírito não age mais e não percebe mais senão por seu corpo fluídico, ou perispírito. Por isso age mais facilmente e percebe melhor, desde que o corpo é um entrave. Tudo isto é ainda resultado da observação. Suponhamos agora duas pessoas próximas, cada qual envolvida por sua atmosfera perispirital. Deixem passar o neologismo. Esses dois fluidos põem-se em contato e se penetram. Se forem de natureza simpática, interpenetram-se; se de natureza antipática, repelem-se e os indivíduos sentirão uma espécie de mal-estar, sem se darem conta; se, ao contrário, forem movidos por sentimentos de benevolência, terão um pensamento benevolente, que atrai. É por isso que duas pessoas se compreendem e se adivinham sem falar. Um certo quê por vezes diz que a pessoa que defrontamos é animada por tal ou qual sentimento. Ora, esse certo quê é a expansão do fluido perispirital da pessoa em contato conosco, espécie de fio elétrico condutor do pensamento. Desde logo compreende-se que os Espíritos, cujo envoltório fluídico é como mais livre do que no estado de encarnação, não necessitam de sons articulados para se entenderem.

     O fluido perispirital é, pois, acionado pelo Espírito. Se, por sua vontade, o Espírito, por assim dizer, dardeja raios sobre outro indivíduo, os raios o penetram. Daí a ação magnética mais ou menos poderosa, conforme a vontade, mais ou menos benfazeja, conforme sejam os raios de natureza melhorou pior, mais ou menos vivificante. Porque podem, por sua ação, penetrar os órgãos e, em certos casos, restabelecer o estado normal. Sabe-se da importância da influência das qualidades morais do magnetizador.

     Aquilo que pode fazer um Espírito encarnado, dardejando seu próprio fluido sobre uma pessoa, pode, igualmente, fazê-lo um desencarnado, desde que tenha o mesmo fluido. Assim, pode magnetizar e, sendo bom ou mau, sua ação será benéfica ou malfazeja.

     Assim, facilmente nos damos conta da natureza das impressões que recebemos, conforme o meio onde nos encontramos. Se uma reunião for composta de pessoas de maus sentimentos, estas enchem o ar ambiente do fluido impregnado de seus pensamentos. Daí, para as almas boas, um mal-estar moral análogo ao mal-estar físico causado pelas exalações mefíticas: a alma fica asfixiada. Se, ao contrário, as pessoas tiverem intenções puras, encontramo-nos em sua atmosfera como se num ar vivificante e salubre. Naturalmente o efeito será o mesmo num ambiente cheio de Espíritos, conforme sejam bons ou maus.

     Isto bem compreendido, chegamos sem dificuldade à ação material dos Espíritos errantes sobre os encarnados. E, daí, à explicação da mediunidade.

     Se um Espírito quiser agir sobre uma pessoa, dela se aproxima, envolve-a com o seu perispírito, como num manto; os fluidos se penetram, os dois pensamentos e as duas vontades se confundem e, então, o Espírito pode servir-se daquele corpo como se fora o seu próprio, fazê-lo agir à sua vontade, falar, escrever, desenhar, etc. Assim são os médiuns. Se o Espírito for bom, sua ação será suave e benéfica e só fará boas coisas; se for mau, fará maldades; se for perverso e mau, ele o constrange, até paralisar a vontade e a razão, que abafa com seus fluidos, como se apaga o fogo sob um lençol d’água. Fá-lo pensar, falar e agir por ele, leva-o contra a vontade a atos extravagantes ou ridículos; numa palavra, o magnetiza e o transforma cataléptico moralmente e o indivíduo se torna um instrumento cego de sua vontade. Tal é a causa da obsessão, da fascinação e da subjugação, que se mostram em diversos graus de intensidade. O paroxismo da subjugação é geralmente chamado possessão. Deve notar-se que, neste estado, muitas vezes o indivíduo tem consciência do ridículo daquilo que faz, mas é constrangido a fazê-lo, como se um homem mais vigoroso que ele fizesse, contra a vontade, mover os braços, as pernas, a língua. Eis um curioso exemplo.

     Numa pequena reunião em Bordeaux, em meio a uma evocação, o médium, um jovem de caráter suave e perfeita urbanidade, de repente começa a bater na mesa, levanta-se com olhar ameaçador, mostrando os punhos aos assistentes, proferindo pesadas injúrias e querendo atirar-lhes um tinteiro. A cena, tanto mais chocante quanto inesperada, durou uns dez minutos, depois do que o moço retomou a calma habitual, desculpou-se do que se havia passado, dizendo que sabia muito bem o que havia dito e feito, mas que não pudera impedir. Sabedor do fato, pedimos explicação numa sessão especial da Sociedade de Paris. Foi-nos respondido que o Espírito que o havia provocado era mais farsista do que mau e que simplesmente tinha querido divertir-se apavorando os assistentes. Isto prova a veracidade da explicação; o fato não se repetiu e o médium continuou a receber excelentes comunicações, como antes. É bom dizer o que provavelmente tinha excitado a verve daquele Espírito brincalhão.

     Um antigo chefe de orquestra do teatro de Bordeaux, o Sr. Beck tinha experimentado, durante vários anos antes de morrer, um fenômeno singular. Todas as noites, ao sair do teatro, parecia-lhe que um homem lhe saltava às costas, cavalgando as suas espáduas, até chegar à porta da casa. Aí o suposto indivíduo descia e o Sr. Beck se achava livre. Nesta reunião quiseram evocar o Sr. Beck e pedir-lhe uma explicação. Foi então que o Espírito farsista achou bom substituí-lo e fazer o médium representar uma cena diabólica, pois nele encontrou, sem dúvida, as necessárias disposições fluídicas para obedecer.

     Aquilo que não passou de acidental, por vezes toma um caráter de permanência, quando o Espírito é mau, porque para ele o indivíduo se torna verdadeira vítima, à qual ele pode dar a aparência de verdadeira loucura. Dizemos aparência, porque a loucura propriamente dita sempre resulta de uma alteração dos órgãos cerebrais, ao passo que, neste caso, os órgãos estão tão intatos quanto os do jovem de quem acabamos de falar. Não há, pois, loucura real, mas aparente, contra a qual os remédios da terapêutica são inoperantes, como o prova a experiência. Ainda mais: eles podem produzir o que não existe. As casas de alienados contam muitos doentes de tal gênero, aos quais o contato com outros alienados só poderá ser muito prejudicial, porque este estado denota sempre uma certa fraqueza moral. Ao lado de todas as variedades de loucura patológica, convém, pois, acrescentar a loucura por obsessão, que requer meios especiais. Mas como poderá um médico materialista estabelecer essa diferença ou, mesmo, admiti-la?

     “Bravo”, irão exclamar os nossos adversários. Não se pode demonstrar melhor os perigos do Espiritismo e nós temos muita razão de o proibir.

     Um instante: o que dissemos prova precisamente a sua utilidade.  

Obs.: Morzine em 1862 tinha 1.779 habitantes; atualmente 2.870.

(Este artigo encerra-se no arquivo: OBSESSÃO II)

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