Capela no Alto da Serra da Estrela - Portugal - Foto iap

POUCAS SAUDADES DA TERRA

(Comunicação do Espírito Alexandre Herculano - Obra: Do País da Luz - Médium: Fernando Lacerda).  

     Não sei o que hei de dizer-te.                                                                                                                      

     Confessar-me tão limpo das vaidades humanas, que te diga desgostarem-me as manifestações de carinhosa saudade, representadas nas evocações que hoje me fazem na minha terra, seria não te falar verdade, e eu jamais deixei ou deixarei de lhe render culto.

     Dizer-te que elas me envaidecem, que elas me lisonjeiam, seria igualmente enganar-te.

     Não satisfazem à minha vaidade, porque a não tenho, seja pelo que for, que na Terra deixasse ou da Terra me venha; não me trazem desgosto, muito apesar das poucas saudades que da Terra tenho, e menos gratidão que à Terra devo, porque a minha alma é sensível às provas de carinho, e, porventura de justiça, que tantos anos volvidos após a minha morte, os meus conterrâneos, os meus coevos1 - alguns dos quais me molestaram, e ainda aí se conservam - ou os filhos de outros que já para aqui vieram - possam prestar à minha memória.

     Serão todas sinceras e muito para receber, como dignas da minha mais amorável gratidão? Não sei; e que o soubesse não me ia bem que viesse pôr-me a selecioná-las.

     Muitos dos que as fazem, obedecem à moda, outros à corrente do oportunismo que determinou dar certa retumbância a uma ideia, a que convém que o meu nome sirva de lábaro; e outros serão realmente justos na apreciação que fazem ao esforço que empreguei, enquanto aí estive, para ser útil ao meu semelhante e à pátria em que nasci.

     E basta que alguns sejam justos, sinceramente justos, para que eu rejubile, por eles e por mim, e mais por mim do que por eles.

     É talvez com uma pontinha de egoísmo que assim penso.

     Eu vim mal-avindo com esse mundo. Manifestei-o no começo da primeira comunicação que te dirigi.

     Não tinha grande respeito pelas pessoas que nele se conservavam, nem em grande conceito as suas opiniões.

     Umas e outras nem sempre se norteiam pelos sentimentos puros da justiça, nem pelos ditames generosos da verdade.

     “Nem sempre”, envolve uma ideia pouco ajustada. Devia dizer mais apropriadamente: - “quase nunca”.

     Assim eu vim pensando quando a morte me libertou da grilheta2 que aí me trazia preso; e não era muito de molde a fazer modificar o meu juízo, o eco que daí me chegava; e folgo porque o meu nascimento tivesse, ao fim de cem anos, servido para dar ensejo a que eu melhorasse a impressão com que tinha partido desse mundo.

     Para alguma coisa boa o meu nascimento devia ter servido...

     É, pois, porque veio desanuviar um pouco o céu do meu pensar, que eu aprecio e agradeço o que estão fazendo.

     Fica menos pesada e menos densa a amargura em que me mergulhava.

     E porque fico mais satisfeito, fico mais desvanecido?

     Não.

     Para que me servem, agora, as pompas daí?

     Para nada.

     O meu orgulho e o meu amor-próprio estão suficientemente reduzidos para que, qualquer deles, aprecie essas pompas, que bem tardias vinham.

     Os que lançam o meu nome como quem desfralda um balção3 em som de guerra, mal fazem.

     Desses repudio a homenagem, por fementida. Não me vêm trazer saudades nem goivos; não vêm enaltecer a minha memória nem engrandecer a minha obra com o seu exemplo.

     Não. Vêm arrancar à paz do meu túmulo os últimos ecos dos gritos de guerra, que, por meu mal e para meu eterno pesar, eu por vezes lancei, estrepitosamente, nos arraiais portugueses, e que eu desejaria para sempre envolvidos no perpétuo silêncio em que a minha voz ficou na Terra.

     Esses vêm buscar uma aliança que lhes nego. Fazem uma obra que desadoro.4

     Nas regiões de paz, em que a Deus aprouve fazer dar-me lugar, ressoa, como fúnebre clangor5 de mil trombetas de guerra, ou como hórrido6 estampido de grossos canhões homicidas, o clamor de ódio e de facção em que querem envolver o meu nome, para alargar o arraial da cizânia e da revolta em que está a família portuguesa.

     Esses, mal fazem em vir revolver os meus ossos e evocar a minha memória.

     Não quero eu hoje lançar no mundo senão a semente da paz fecundante e rica; não quero dar conselho que não seja para fortalecer os tíbios, moderar os atrevidos, encorajar os desesperados, regenerar os pervertidos. Não desejo mais de que mostrar a todos o luminoso facho da verdade, para que a essa luz vejam que só há um destino para o homem: - a perfeição; que só há um único caminho para lá chegar: - a prática do bem.

     Tudo quanto disse aí, em que a paixão cega entornou, caudalosamente, ódio e má vontade, repulso e enjeito com quanta força e autoridade eu possa ter.

     Àqueles que à minha obra forem buscar o que ela tenha de bom, de útil, e de consolador, eu bendigo e agradeço.

     Esses são como as abelhas laboriosas e previdentes, que às flores venenosas sabem extrair o mel perfumado e ambarino.

     Que façam preciosa cresta desse mel - que algum tem a minha obra; - e fazendo-o utilizar por todos, farão jus ao meu mais profundo reconhecimento, ao mesmo tempo que praticarão uma benemerência, e mais que uma benemerência: uma caridade.

     Essa caridade é para os daí, que a possam e saibam aproveitar; e para mim que me alarga o campo em que o meu trabalho arroteia ainda, fecundantemente, a seara de que colherei ótimo fruto.

     Aqui tens o que eu tenho a dizer-te, como apreciação às festas que, no dia de hoje, me fazem aí na Terra.

Notas do compilador: 1 - coevos = Que, ou aquele que viveu na mesma época; 2 - grilheta = grande anel de ferro na extremidade de uma corrente do mesmo metal, e a que se prendiam os condenados a trabalhos públicos; o condenado a esses trabalhos; 3 - balção = insígnia ou bandeira antiga; grande estandarte dos Templários; 4 - desadoro = estado de quem sofre dor violenta; 5 - clangor = som forte; 6 - hórrido = que causa horror, muito feio, medonho, cruel.

UM  ESPÍRITO  É  UM  PEQUENO  SUBLIME  UNIVERSO!

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