Saint-adresse vista de Trouville- Foto Alainauzas                                                                                                 

    Trouville

Camille Flammarion (1842-1925). Astrônomo francês. Como médium colaborou com Kardec na codificação espírita. Escreveu vários livros de cunho espiritista. Fotografou uma mesa em levitação.

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SENTINDO DEUS NA NATUREZA

(Camille Flammarion - Obra: Deus na Natureza).

     Uma tarde de verão, deixara eu as flóreas vertentes de Sainte-Adresse, deliciosa vila litorânea recortada em colinas, para galgar as grimpas do cabo Hevre, que ao poente lhe demoram. Quando, de sua base contemplamos os cabeços desses penhascos, acreditamos estar vendo colossos de granito avermelhados pelo sol, quais gigantes imóveis que assistissem, petrificados, aos bramidos do oceano que vêm morrer a seus pés. No seu isolamento, esses maciços enormes e inacessíveis pelo lado do mar, parecem talhados para dominar o soberbo panorama. A seu lado, fronteando o oceano, o homem sente-se tão insignificante que acaba perdendo de vista a própria existência e confundindo-se com a vida abstrata, que paira acima dos bramidos oceânicos.         

     Sempre a subir, cheguei ao plano superior, onde ficam os semáforos que avisam, longe, aos navios o movimento horário das vagas costeiras, e onde os faróis se acendem à boca da noite, quais estrelas permanentes na amplidão das trevas. O Sol, glorioso, ainda se pendurava rubro das nuvens incendidas, posto que já oculto para o Havre e para as planuras que bordam o estuário do Sena. Ao alto, o céu azul me coroava com a sua pureza. Em baixo, a mata, fervilhante de insetos, exalava em  ondas o seu perfume. Caminhei até à escarpa, ao fundo da qual se mostram os abismos. Do cairel da rocha em vertical, o olhar domina a imensidão dos mares, desdobrados à esquerda, de sueste a nordeste. Mergulhando-o perpendicularmente, ele se perde  na profundeza de massas verdes, rochedos e brenhas escuras - tapete rústico estendido a trezentos pés abaixo dos contrafortes dessa muralha. O gemido das vagas mal nos chega nestas alturas, nosso ouvido apenas percebe um rumor uniforme, que o vento gradua de intensidade. É um silêncio que canta, longe do mar.

     A Natureza estava atenta ao derradeiro adeus, que o príncipe da luz enviava ao mundo, antes que descesse do seu trono para sumir-se no horizonte líquido. Calma e concentrada, ela assistia à prece universal dos seres, pois que eles a fazem  - santa prece do reconhecimento - ao receberem os últimos olhares do Sol. E todos, desde a flébil e solitária medusa e a estrela-do-mar policroma, até os gafanhotos saltitantes e os alcíones de neve; todos lhe agradecem piedosamente. Era, então, um como incenso a subir das vagas e dos montes, parecendo que os ruídos temperados da plaga, a brisa que soprava do continente,  a  atmosfera  embalsamada,  a  luz  palescente  na  serenidade  do  céu azul, o refrigério crepuscular e tudo o mais tinha, naquele sítio, consciência de vida, comungando contrita e amorosamente da adoração universal.

     Mentalmente, nesse holocausto da Terra, eu sentia as recíprocas atrações dos mundos; não apenas as que alternativamente afastam e aproximam nosso orbe do foco solar, como as de todos os astros que gravitam na imensidão dos céus. Acima de minha cabeça, desdobravam-se as sublimes harmonias e as gigantescas translações dos corpos celestes! A Terra era qual átomo flutuante no infinito! Deste átomo,  porém, a todos os sóis do espaço, àqueles cuja luz leva milhões de anos para chegar até nós, aos que jazem desconhecidos para além da nossa visibilidade, eu sentia um laço invisível abrangendo, num só halo vivificante, todos os universos e todas as almas. E a prece celestial, grandiosa, imensurável, tinha a sua repercussão, a sua estrofe, a sua representação visível naquela vida terrena que palpitava em torno de mim, no rugido do mar, no perfume das selvas, no canto das aves, na melodia confusa dos insetos, no conjunto emocionante do cenário e, sobretudo, na luminosa  tonalidade daquele extraordinário crepúsculo!

     Fitava-o embevecido, sim... mas, sentia-me tão pequeno no meio de tantas graças e grandezas, que acabei por entristecer-me. Senti como que se esvanecer a minha personalidade diante da imensidade da Natureza. Não me tardou a impressão de já não poder falar, nem pensar.

     - O vasto mar fugia para o infinito. - Eu não mais existia, meus olhos se velavam... E, como as faces se me inundavam de pranto, sem que me pudesse explicar porque chorava, ajoelhei-me e, prosternado ante o céu, confundi minha fronte com as ervas... - o mar fugia sempre e os seres continuavam em prece.

     E o Sol, fonte dessa luz e dessa vida, espiou uma última vez lá da faixa marinha do horizonte, como que satisfeito com aquela homenagem que nem um ser ousara recusar-lhe... E assim, contente da jornada, mergulhou orgulhoso no hemisfério de outros povos.

     Fez-se, então, grande silêncio em toda a Natureza. Nuvens de ouro e púrpura evolaram-se às paragens reais e ocultaram os últimos timbres avermelhados. A sombra descia do alto. As ondas adormeceram, porque o vento abrandara. Os pequeninos seres alados adormeceram também, e Vésper, núncia da noite, começou a luciluzir no éter.

     "Ó misterioso Incógnito! - exclamei - grande, imenso Ser, que somos nós, pois? Supremo autor da harmonia, quem és tu, se tão grandiosa é a tua obra? Pobres mitos humanos os que supõem conhecer-te - ó Deus! Átomos, nada mais que átomos, como somos ínfimos! E como tu és grande! Quem, pois, ousou nomear-te pela primeira vez? Que orgulhoso insensato pretendeu definir-te, ó Deus! - ó meu Deus, todo poder e ternura, imensidade sublime e inconcebível!

     E, como qualificar os que vos têm negado, que em vós não creem, que vivem fora do vosso pensamento e jamais sentiram vossa presença - ó Pai da Natureza!

     Amo-te! amo-te! Causa superna e desconhecida, Ser que palavra alguma pode traduzir, eu vos amo, divino Princípio! mas... sou tão pequenino, que não sei se me ouvireis, se me entendereis..."

     Como estes pensamentos se precipitavam fora de mim, para fundirem-se na afirmação grandiosa de toda a Natureza, as nuvens se esgarçaram no poente e a radiação áurea das regiões iluminadas inundou a montanha.

     "Sim! tu me ouves, ó Criador! tu que dás a beleza e o perfume à florinha silvestre! A voz do oceano não abafa a minha voz e meu pensamento a ti se eleva, ó Deus! com a prece coletiva".

     Do todo do Cabo, minha vista se estendia ao Sul como ao Ocidente, na planície como sobre o mar. Voltando-me, lobriguei as cidades humanas, meio adormecidas nas plagas. No Havre, as ruas comerciais se iluminavam, e além, na margem oposta, Trouville acendia o seu parque de diversões.                                                       

     E enquanto a Natureza se mostrava reconhecida ao seu Autor com o saudar à missão de um dos seus astros fiéis; enquanto todos os seres lhe enviavam suas preces e o rugido dos mares misturava-se ao vento, em ação de graças ao termo de um belo dia; enquanto a obra criada, unânime e recolhida, se oferecera ao Criador, a criatura imortal e responsável - ser privilegiado da Criação, expoente do pensamento - O Homem, vivia à margem, indiferente a tantos esplendores, sem olhos de ver nem ouvidos de ouvir, parecendo ignorar essa harmonia universal, em cujo seio deveria encontrar a sua felicidade e a sua glória.

Camille Flammarion

POBRES  MITOS  HUMANOS  OS  QUE  SUPÕEM  CONHECER-TE  -  Ó  DEUS!  COMO  TU  ÉS  GRANDE!

                                                                                                                                                         PRÓXIMO                                                                                                                                                                INÍCIO