Restos da Via Apia em Roma. Autor: Kleuske para www.wikipedia.org/ (Holandesa). Via Apia era considerada a rainha das estradas. Seu início foi em 312 a. C. Ela ligava Roma a Brindisi.

UMA LEMBRANÇA DE VIDAS PASSADAS

(Allan  Kardec. Revista Espírita 1864) 

     Num artigo biográfico sobre Méry, publicado pelo Journal littéraire de 25 de setembro de 1864, encontra-se a seguinte passagem:

     “Há teorias singulares, que para ele são convicções.

     Assim, ele crê firmemente que viveu várias vezes; lembra-se das menores circunstâncias de suas existências precedentes e as detalha com uma nota de certeza, que impõe como uma autoridade.

     Assim, foi um dos amigos de Virgílio e de Horácio, conheceu Augustus Germanicus e fez a guerra nas Gálias e na Germânia. Era general e comandava as linhas romanas quando estas atravessaram o Reno. Conhecia nas montanhas lugares onde havia acampado, nos vales campos de batalha onde combateu. Lembra-se de palestras em casa de Mecenas, que são o eterno objeto de seus pesares. Chamava-se Mínius.

     Um dia, na vida atual, estava em Roma e visitava a biblioteca do Vaticano. Ali foi recebido por gente moça, noviços em longas vestes escuras, que se puseram a lhe falar no latim mais puro. Méry era bom latinista, no que se refere à teoria e às coisas escritas, mas ainda não havia experimentado conversar familiarmente na língua de Juvenal. Ouvindo esses Romanos de hoje, admirando esse magnífico idioma, tão harmonizado com aqueles monumentos, com os costumes da época em que era usado, pareceu-lhe que um véu caía de seus olhos; pareceu-lhe que ele próprio havia conversado, em outros tempos, com amigos que se serviam dessa linguagem divina. Frases feitas e impecáveis saíam-lhe da boca; achava imediatamente a elegância e a correção; enfim, falou latim como fala francês; teve em latim o espírito que tem em francês. Nada disso podia fazer-se sem um aprendizado e, se não tivesse sido um súdito de Augusto, se não tivesse atravessado aquele século de todos os esplendores, não teria improvisado uma ciência, impossível de adquirir em poucas horas.

     Outra passagem sua na Terra foi nas Índias, por isso as conhece tão bem. Por isso, quando publicou a Guerre du Nizan, nenhum de seus leitores terá duvidado que não tivesse morado muito tempo na Ásia. Suas descrições são vivas, seus quadros são originais, toca com o dedo os mínimos detalhes e é impossível não tenha visto o que conta, pois lá está o cunho da verdade.

     Pretende ter entrado naquele país com uma expedição muçulmana, em 1035. Lá viveu cinquenta anos, passou belos dias e lá se fixou para não mais sair. Lá, ainda, era poeta, mas menos letrado do que em Roma e em Paris. Inicialmente guerreiro, depois sonhador, guardou na alma as imagens empolgantes das margens do Rio Sagrado e dos ritos indus. Tinha várias moradas, na cidade e no campo, orou nos templos dos elefantes, conheceu a civilização avançada de Java, viu de pé as esplêndidas ruínas que assinala e ainda tão pouco conhecidas.

     É preciso ouvi-lo contar esses poemas, pois são verdadeiros poemas essas lembranças à maneira de Swedenborg. É muito sério, não tenhais dúvida. Não é uma mistificação arranjada à custa dos ouvintes: é uma realidade de que ele consegue vos convencer.

     E suas doutrinas sobre a história, que possui admiravelmente! E suas pilhérias tão finas, que lançam uma luz nova sobre tudo quanto elas tocam! E os relatos, que são romances, que quase nos fazem chorar, depois de não termos podido conter o riso! Tudo isto faz de Méry um dos mais maravilhosos homens dos tempos em que viveu e, mesmo, daqueles em que sua alma errante esperava a vez para entrar num corpo e novamente fazer que dela falassem as gerações sucessivas". (Pierre Dangeau). 

     O autor do artigo não acompanha este fato de nenhuma reflexão. Depois de ter exaltado o alto mérito de Méry e sua grande inteligência, teria sido inconsequente taxá-la de loucura. Se, pois, Méry é um homem de bom senso, de alto valor intelectual; se a crença de já ter vivido é nele uma convicção; se essa convicção nele não é produto de um sistema de sua maneira, mas o resultado de uma lembrança retrospectiva e de um fato material, não há aí de que despertar a atenção de todo homem sério? Vejamos a que incalculáveis consequências nos conduz este simples fato.

     Se Méry já viveu, não deve isto ser exceção, porque as leis da natureza são as mesmas para todos e, assim, todos os homens também devem ter vivido; se se viveu, não é certamente pelo corpo que se renasce: é, pois, o princípio inteligente, a alma, o Espírito. Então temos uma alma. Desde que Méry conservou a lembrança de várias existências, desde que os lugares lhe recordam o que viu outrora, com a morte do corpo a alma não se perde no todo universal: conserva, pois, a sua individualidade, o conhecimento do seu eu.

     Lembrando-se Méry do que foi há dois mil anos, em que se tornou sua alma no intervalo? Abismou-se no oceano do infinito ou perdida nas profundezas do espaço? Não; sem isto ela não reencontraria sua individualidade de outrora. Então deve ter ficado na esfera da atividade terrestre, vivendo a vida espiritual, em nosso meio ou no espaço que nos rodeia, até tomar um novo corpo. Não sendo Méry único no mundo, deve haver em torno de nós uma população inteligente invisível.

     Renascendo para a vida corpórea, após um intervalo mais ou menos longo, a alma renasce no estado primitivo, no estado de alma nova, ou aproveita as ideias adquiridas em suas existências anteriores? A lembrança retrospectiva resolve a questão por um fato: se Méry tivesse perdido as ideias adquiridas, não teria readquirido a língua que falava outrora; a visão dos lugares nada lhe teria recordado.

     Mas se já vivemos, por que não reviveríamos ainda? Porque esta existência seria a última? Se renascemos com o desenvolvimento intelectual realizado, a intuição que trazemos das ideias adquiridas é um fundo que ajuda a aquisição de novas ideias, que tornam o estudo mais fácil. Se um homem for apenas meio matemático numa existência, menos trabalho lhe será preciso em nova existência para ser um matemático completo. É uma consequência lógica. Se se tornou bom pela metade, se se corrigiu de alguns defeitos, necessitará de menos esforço para tornar-se melhor, e assim por diante.

     Nada do que adquirimos em inteligência, em saber e em moralidade fica perdido; quer morramos jovens ou velhos, quer tenhamos ou não tempo de o aproveitar na existência presente, colheremos os seus frutos em existências subsequentes. As almas que animam os franceses policiados de hoje podem, então, ser as mesmas que animavam os bárbaros francos, ostrogodos, visigodos, os gauleses selvagens, os conquistadores romanos, os fanáticos da idade média, mas que, a cada existência, deram um passo à frente, apoiadas nos passos anteriores, e que progredirão ainda.

     Eis, pois, resolvido o grande problema do progresso da humanidade, esse problema contra o qual se chocaram tantos filósofos! está resolvido pelo simples fato da pluralidade das existências. Mas quantos outros problemas vão encontrar a sua solução na solução deste! Que horizontes novos isto não abre! É toda uma revolução nas crenças e nas ideias.

     Assim raciocinará o pensador sério, o homem refletido. Um fato é um ponto de partida, do qual tira consequências. Ora, quais são os pensamentos que o caso de Méry desperta no autor do artigo? Ele próprio os resume nestas palavras: “Há teorias singulares, que para ele são convicções.”

     Mas se esse autor nisto vê apenas uma coisa bizarra, pouco digna de sua atenção, o mesmo não se daria com todo o mundo. Este encontra em seu caminho um diamante bruto, que não se digna apanhar, por lhe desconhecer o valor; ao passo que aquele saberá apreciá-lo e tirar proveito.

     As ideias espíritas hoje se produzem sob todas as formas; estão na ordem do dia e a imprensa, sem querer confessá-las, as registra e as semeia em profusão, crendo que apenas enriquece suas colunas de facécias. Não é admirável que todos os adversários da ideia, sem exceção, trabalhem a porfia na sua propagação? Gostariam de calar o que a força das coisas os arrasta a falar. Assim o quer a Providência - para os que creem na Providência.

     Dirão que raciocinamos sobre um fato isolado, que não faz lei. Porque, se a pluralidade das existências fosse uma condição inerente à humanidade, porque nem todos os homens se recordam, como Méry? A isto respondemos: Dai-vos ao trabalho de estudar o Espiritismo e o sabereis. Não repetiremos, pois, o que cem vezes foi demonstrado relativamente a inutilidade da lembrança, para aproveitar a experiência adquirida em vidas precedentes e o perigo dessa lembrança para as relações sociais.

     Há, porém, uma outra causa para o esquecimento, de certo modo fisiológica, devida, ao mesmo tempo à materialidade do nosso invólucro e à identificação do nosso Espírito pouco adiantado com a matéria. À medida que o Espírito se depura, os laços materiais são menos tenazes, o véu que obscurece o passado é menos opaco; assim, a faculdade da lembrança retrospectiva segue o desenvolvimento do Espírito. O fato é raro em nossa Terra, porque a humanidade ainda é muito material; mas seria erro supor que Méry seja um exemplo único. Deus permite, de vez em quando, que ele se apresente, a fim de trazer os homens ao conhecimento da grande lei da pluralidade das existências, a única que explica a origem das qualidades boas ou más, mostra-lhe a justiça das misérias que suporta aqui e lhe traça a rota do futuro.

     A inutilidade da lembrança para aproveitar o passado é o que têm mais dificuldade de compreender os que não estudaram o Espiritismo; para os Espíritas é uma questão elementar. Sem repetir o que a respeito foi dito, a seguinte comparação poderá facilitar a sua compreensão.

     O estudante percorre a série de classes, desde a oitava até a filosofia. O que aprendeu na oitava lhe serve para aprender o que ensinam na sétima. Suponhamos agora que no fim da oitava tenha perdido a lembrança do tempo passado nesta classe; nem por isto seu espírito será menos desenvolvido e ornado de conhecimentos adquiridos; apenas não se lembrará nem onde nem como os adquiriu, mas, à vista do progresso realizado, estará apto a aproveitar as lições da sétima. Suponhamos, ainda, que na oitava tenha sido preguiçoso, colérico, indócil, mas que, tendo sido castigado e moralizado, o caráter se tenha modificado, tornando-se laborioso, manso e obediente; levará estas qualidades para a nova classe que lhe parecerá ser a primeira. De que lhe serviria saber que foi fustigado pela preguiça, se não mais é preguiçoso? O essencial é que chegue a sétima classe melhor e mais capaz do que era na oitava. Assim será de classe em classe.

     Então! o que não acontece ao escolar, nem ao homem nos diversos períodos de sua vida, existe para ele de uma a outra existência: eis toda a diferença, mas o resultado é exatamente o mesmo, posto que em maior escala. ( Allan  Kardec. Revista Espírita 1864).                                                                                                                    

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